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Editorial: Azul da cor do fim





Os loucos anos vinte prosseguem em febre. A patologia é fundamentalmente social, paixão em demasia para uns e nada de tesão para outros. A vida brasileira caminha a passos largos na direção do abismo, localidade de nome simpático que pode muito bem ser traduzida como o casamento entre o capitalismo e o mau gosto. Contra o abismo, ou melhor, no desejo de admirá-lo de longe, lançamos ao mundo a Cupim #03. Pense nela como uma pedra, daquelas boas de jogar em um lago: com o movimento certo, ela ricocheteia contra as possibilidades, tardando em afundar.


Agora, falando sério, todo dia é o fim do mundo, como dizia o Lula Queiroga. Se existe algo que a História aponta é que fins e começos são namorados. Apesar de tanto pesar, dos irmãos, mães, filhos e amores que se despedem em razão do vírus fascista que abocanhou a alma dos brasileiros, ainda estão girando os dados. Contra a política de morte capitaneada por Jair Bolsonaro, insurge o desejo, os saberes, a democracia brasileira: utopia, promessa e profecia de nosso povo.


Nesse contexto aturdido, selecionar e agrupar textos, colocá-los em diálogo com as artes visuais, para além de gestos editoriais, tornaram-se movimentos de encontro. Os escritores e escritoras que nos enviaram sua produção, mais do que contribuírem com a Revista, nos deram espaço para ouvir outras vozes. Com este terceiro número, queremos produzir o mesmo efeito dos burburinhos ou, talvez pela memória de fevereiros passados e agora impossíveis, da estridente confusão sonora de uma multidão em carnaval. Trata-se de um objetivo modesto: produzir som. Nessa sintonia, o conto Lugar de falo, de Ana Tavares Toledo, e o poema em prosa Dois alto (rádio shuffle), de Márcio Junqueira, sustentam-se justamente pela sobreposição de vozes dissonantes. A boca aberta desenhada por Vinícius Ribeiro, ilustração deste último texto, parece amplificar esse rumor.


O diálogo e a polifonia também são estruturantes dos textos dramáticos, que compuseram de maneira especial este número. Prat – guia para a criação de um mundo, de Manuela Infante, traduzido por Aléxia Prado, é uma amostra delirante da dramaturgia chilena contemporânea e, embora tenha sido escrita há vinte anos, ainda nos soa fresca ao já começar mapeando medos, os mesmos de hoje: “Também tivemos medo de contrair AIDS, houve uma época, inclusive, em que temíamos o horizonte. (...) Medo de ficar sem água, medo de ficar sem o vazio”. A dramaturgia também aparece aqui, dessa vez como objeto de análise, no ensaio A gargalhada acre de Douglas Turner Ward, de Guilherme Diniz, escrito especialmente para a Cupim. Ao se aprofundar em três peças teatrais de Ward, o autor destaca a ironia como mais um recurso de produção de ruído e como ferramenta de resistência para o teatro negro norte-americano.


Vozes vindas de outras paisagens também compõem harmonicamente a mesma dissonância. Os três poemas de Yin Lichuan, poeta chinesa traduzida por Marina Rima, e o poema Rumores, da poeta colombiana Clemencia Tariffa, em tradução de Estela Vidotti, mostram-se capazes, num mesmo acorde, de aproximação e repulsa, de submergir no mar e de apunhalar você. Como se não bastasse, Tariffa parece sintetizar nosso tempo com o primeiro verso do seu poema ruidoso, verso que dura em nossa cabeça por muito tempo depois da leitura: “Não logro entender”.


Por fim, dois artistas contemporâneos de Belo Horizonte participam deste encontro: Maraíza Labanca, poeta, em entrevista gravada por Brenda K. Souza e Fernanda Maia em 2016, e Zé D Nilson, pedreiro e artista plástico, que caminhou com Clara Amorim e Douglas Ferreira, em outubro de 2020, munido de máscara e gestos, por viadutos da cidade, mostrando suas obras. Os fazeres dos dois artistas, que falam e criam partindo de universos e lugares tão diversos, são destrinchados nessas conversas e nos revelam que, apesar das diferenças, o encontro com a palavra na criação é potente quando marcado pela contingência: ambos tropeçam nas palavras, encontrando-as pelo caminho e incorporando-as em suas obras e textos.


Pensem, então, na Cupim #03 como uma pedra. Não em sua dureza, isso não, mas na sua possibilidade de quicar sobre as águas, de afiar bicos de passarinhos, de tornar-se enfim poeira azul, pois, ainda citando os versos de Tariffa, “assim terminamos as borboletas”. Se o fim é iminente, se o abismo é inegável, que tratemos de fazer uso dos gestos possíveis para retardá-lo, como Ana Cristina Cesar, com sua cartilha da cura: “As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.”




12 de fevereiro de 2021




 

Ilustração: Rogério Rodrigues

Composição: Marco Marinho

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