Por Guilherme Diniz
Em 1966, Douglas Turner Ward [1], até então um recém-afamado dramaturgo, escreveu um acurado artigo para o jornal estadunidense The New York Times, no qual desfere um mordaz ataque ao establishment teatral de seu país, denunciando e analisando, percucientemente, a sistemática exclusão de autores teatrais negros dos circuitos artísticos, casas de espetáculos e antologias dramatúrgicas. American Theater: for whites only? (Teatro Americano: apenas para brancos?, em tradução livre), título de seu artigo, constituiu-se como uma provocação, um estranhamento quanto à naturalidade de determinadas ausências e, finalmente, uma reflexão-flecha rumo a um dos sustentáculos da supremacia branca norte-americana, isto é, seu aparato estético-ideológico, cujos símbolos legitimam uma visão de mundo fundamentalmente opressiva. A princípio, Ward examina o estado letárgico do teatro estadunidense: aburguesado na origem e no destino, pretensioso e desejoso de tornar-se universal/universalizante a partir de temáticas e angústias de uma classe média branca, que sonha em definir-se como imagem exemplar de toda a condição humana. O que seria, portanto, o negro nessa conjuntura? Uma presença incômoda, diz-nos o autor. Mais: seria a materialização de um constrangimento, uma realidade da qual não se deseja falar, em suma, a antítese de um altivo projeto civilizatório. Ao dramaturgo negro pede-se que não aborde certos temas, que restrinja suas problemáticas e, o mais importante, que siga princípios estéticos já consagrados. As vexatórias contradições do teatro estadunidense da época são saborosamente espicaçadas por Douglas Turner Ward, especialmente ao mencionar alguns dramaturgos negros, como ele próprio, que vinham ganhando indiscutível proeminência no cenário cultural, mas continuavam a ser vítimas de insidiosas tentativas de apagamento, a saber: Louis Peterson, Lorraine Hunsberry, Ossie Davis, James Baldwin e Le Roi Jones.
Aliás, ao longo de todo o século XX, as agruras vivenciadas pelos artistas negros norte-americanos já eram alvos de incontornáveis debates, nos quais as críticas dirigidas à estética, à política e à formação social dos Estados Unidos figuravam entre as mais penetrantes. A célebre coletânea de artigos e ensaios, organizada por Addison Gayle Jr, Black Aesthetic (1971), perfaz um intrincado painel reflexivo, composto por diversos nomes da intelectualidade negra que, por sua vez, abordaram um amplo espectro de assuntos da vida cultural negra na música, nas artes cênicas, nas literaturas etc. Integram a coletânea textos de distintas décadas do século passado que, coletivamente, discutem aspectos teórico-históricos das estéticas negras, traços estilísticos recorrentes na ficção afro-americana e a urgente necessidade em se formular aportes reflexivos para desafiar os princípios orientadores da crítica de arte, dominantemente escrita por homens brancos. Isto é, a busca por construções teóricas, epistemológicas e estéticas, para subsidiar a leitura e o debate sobre a produção artística negra. Quais são as possibilidades de vida plena de sujeitos negros, imersos em uma nação histórica, política e economicamente racista, como os Estados Unidos (ou quem sabe o Brasil)? Quais as possíveis relações entre a produção artístico-cultural negra e as formas políticas de resistência em um contexto ameaçador? Estas são questões nucleares que acompanharam (e ainda acompanham) as discussões teóricas de articulistas, pensadores e artistas negros e negras lá e cá.
Douglas Turner Ward é categórico: a mazela é conjuntural, não cabendo encontrar bodes expiatórios ou salvações messiânicas. Ademais, ele se debruça sobre um aspecto anteriormente investigado por W. E. Du Bois: a fundamental importância de um público negro para a vitalidade da dramaturgia e da cena afro-americanas:
Mas para um dramaturgo negro empenhado em examinar os contornos, contextos e a profundidade de suas experiências a partir de um ponto de vista livre, imaginativo e negro, há uma necessidade gritante por uma plateia de outros negros. (WARD, 1966)
A participação de plateia negras no fortalecimento dos artistas também negros se afigura vital para Douglas Turner Ward, visto que o diálogo constante, propositivo e crítico entre palco e plateia não apenas contribui para a longevidade e a sobrevida financeira das temporadas de peças teatrais escritas e encenadas por artistas negros, mas também amplia as discussões e leituras sobre os trabalhos apresentados, fornecendo recepções e olhares mais multifacetados. Ora, esta interlocução dinâmica entre artistas e públicos negros afeta, de um lado, o criador, que agora conta com uma reflexão sobre sua obra a partir de outros arcabouços vivenciais, intelectuais e culturais, em geral, bem diferentes das plateias brancas de classe média. De outro lado, também afeta o público negro, pois agora poderá não apenas ver-se simbolicamente no palco, mas igualmente pensar sobre sua condição histórica a partir da representação dramática, de outras narrativas cênicas, em toda sua amplitude estética.
É fundamental, portanto, visualizarmos a posição de Douglas Turner Ward no interior de um longo e complexo contexto teatral de lutas negras, que desde o século XIX [2] vêm produzindo reflexões, debates e enfrentamento à sociedade estruturalmente racista dos Estados Unidos. Um dos mais vívidos exemplos é, no século XX, o período denominado de Harlem Renaissance, na década de 1920, que condensa, em vários setores culturais, uma explosão de produções artísticas, experimentalismos e reflexão política, nos quais a resistência negra se manifestará. Até os anos 60, as teatralidades negras nos Estados Unidos se desenvolveram de modo bastante profuso, incluindo: peças teatrais voltadas para as necessidades comerciais mais imediatas; investigações artísticas mais ousadas; busca por uma figuração mais realista da condição de vida da população negra; ora aproximação, ora recusa de padrões cênicos do mainstream branco presente na Broadway. Alguns dos principais nomes dessas décadas são: Langston Hughes, Richard Wright, Hall Johnson, Theodore Browne, Theodore Ward, Alice Childress, Louis Peterson, William Branch etc., uma longa lista que inclui os nomes já citados no início deste texto. Já em 1960, na esteira das lutas por direitos civis, o Teatro Negro adotará uma postura radicalmente engajada na conscientização direta da população, como sintetiza Leda Maria Martins (1995):
O Teatro Negro dos anos 60 vai impor-se como uma prática de engendramento de falas, um lugar de usurpação e elaboração de saberes, que pretende substituir, desconstruir e desmistificar a rede semiótica de geração e circulação do signo, do status quo, erigindo, no universo de representação, novas possibilidades de tabulação e construção cênica. As noções mais usuais de verdade sobre os negros serão confrontadas, por oposição, justaposição, ou contraponto, com outros saberes, com outras práticas de dramatização do real, com outros jogos de linguagem.
Douglas Turner Ward encerra seu antológico artigo defendendo a necessidade imperativa de uma companhia teatral negra, autônoma, dirigida e orientada por artistas negros para não apenas sanar uma lacuna histórica, mas abrir novos caminhos cênicos, cujas bases estariam tanto na vida afro-americana, quanto nos mais distintos exemplos da dramaturgia mundial. Um empreendimento teatral sério, aberto às mais instigantes possibilidades estéticas para expressar cenicamente as experiências negras no mundo, bem como refletir sobre outros tantos conflitos sociais culturalmente relevantes.
A princípio, Ward examina o estado letárgico do teatro estadunidense: aburguesado na origem e no destino, pretensioso e desejoso de tornar-se universal/universalizante a partir de temáticas e angústias de uma classe média branca, que sonha em definir-se como imagem exemplar de toda a condição humana. O que seria, portanto, o negro nessa conjuntura? Uma presença incômoda, diz-nos o autor.
O sonho de Douglas Turner Ward se concretizará um ano após a publicação desse artigo. Em 1967, o ator e produtor Robert Hooks (1937 -) e o empresário Gerald Krone (1934 – 2020) juntaram-se a Ward para fundarem a Negro Ensemble Company [3], uma das mais aclamadas cias. teatrais negras dos Estados Unidos, que até o presente momento continua a energizar o palco norte-americano com espetáculos, textos teatrais e profissionais incontornáveis, sem, contudo, afastar-se de seus propósitos estéticos e políticos antirracistas.
Não nos debruçaremos sobre o histórico da Negro Ensemble Company, pois nosso intuito aqui será ensaiar algumas impressões, associações e ideias suscitadas pela leitura de três textos teatrais de Douglas Turner Ward – dramaturgo lamentavelmente pouco conhecido no Brasil. Veremos que a verve acidamente irônica de Ward ainda tem muito a dizer a estes tempos em que as dinâmicas racistas, sob a égide da vida neoliberal, têm desenvolvido novas tecnologias de extermínio, exclusão e desumanização. As questões disparadas pelo dramaturgo norte-americano englobam diversas facetas da violência racial em suas dimensões psicofísicas, aliando comicidade, ambiguidade e um feroz sarcasmo em cenas, por assim dizer, desconcertantes, nos quais as engrenagens sociais são, risivelmente, reviradas.
AS AUSÊNCIAS , AS MÁSCARAS E AS DUPLICIDADES
Abordaremos aqui três peças de Douglas Turner Ward, quais sejam: as duas primeiras a alcançar uma montagem profissional – Day of Absence e Happy Ending, ambas de 1965 e apresentadas conjuntamente – e Brotherhood encenada em 1970. Essa tríade dramatúrgica apresenta alguns dos traços mais fundamentais da dramaturgia de Ward, isto é: a depurada e aguda ironia na figuração das relações étnico-raciais nos Estados Unidos; a utilização de acontecimentos insólitos (quiçá fantásticos) para gerar cômicos e absurdos estranhamentos na cotidianidade da vida; a construção de caricaturas, que por vezes resvalam no grotesco, para deslocar nossas percepções acerca das convenções sociais e das identidades em um mundo violentamente racializado. O aparente realismo em Ward é sutil ou abertamente sabotado.
Em Happy Ending (Final Feliz, em tradução livre) presenciamos o lacrimejante dilema de Ellie e Vi, duas empregadas domésticas em frangalhos, emocionalmente, pois algo gravíssimo ocorrera no local de trabalho das duas. A princípio, não nos é dado a conhecer as razões de tal pranto tão intenso. Essa incógnita produz, em nós leitores, uma jocosa interrogação acerca do que acontecera a Ellie e a Vi, que se desesperam, em seu modesto apartamento no Harlem. A real explicação para o choro, como saberemos no decorrer do texto teatral, não poderia ser mais peculiar (para dizer o mínimo): os ricos (e brancos) patrões, o Sr. e a Sra. Harrinson, estão prestes a divorciar-se. Mais: a Sra. Harrinson foi pega em flagrante cometendo uma terrível infração conjugal, ao resolver doar seus amores a um terceiro (que, diga-se de passagem, é o melhor amigo do marido), numa geometria amorosa, um tanto desencontrada ou desequilibrada, como um triângulo escaleno – para citar o título de uma peça do saudoso Silveira Sampaio. Trocando em miúdos, o adultério da esposa foi descoberto pelo marido, e a harmonia do lar burguês, despedaçada. É por isso que as duas se queixam dramaticamente, a princípio.
Quando Ellie e Vi revelam os motivos de suas lancinantes dores, Douglas Turner Ward ataca, pelo sarcasmo, as abusivas relações de dominação, marcadas pela dimensão racial, entre patrões e empregados domésticos. Vejamos: a chorosa dupla conta que elas são o esteio organizacional do lar onde trabalham, realizando todo o tipo de função para manter o bem-estar, desde as inúmeras tarefas domésticas até equilibrar todas as contas da casa, criação da filha dos patrões e (pasmem) aconselhamento amoroso para proteger o casamento dos empregadores. Por todo esse trabalho, as duas recebem um modestíssimo salário, como Ellie diz “ [...] money I git in my envelope ain’t worth the time ‘n’ the headache...”. Aí reside uma faceta sarcástica da peça: o lar burguês está se desfazendo, e isso é tudo o que elas possuem de mais importante. Elas vivem em função do trabalho, tamanha a exploração de suas forças. Resquícios vivos da escravidão redimensionados na dinâmica capitalista. Pela forma apaixonada como Ellie e Vi defendem a vida conjugal dos Harrinson, é possível supor que o ambiente de trabalho é o bem mais precioso que elas possuem. Será mesmo?
A intensa afetação de Ellie e Vi é contrastada pela figura do jovem, elegante e belo Junie, sobrinho delas, que, em sua irreverência, oferece um contraponto crítico ao estado desolado das tias, reagindo com firme indignação. Junie é inclemente para com elas ao enxergar, em suas atitudes, a subserviência, a passividade e a bruta alienação de subordinados dóceis. O sarcasmo do rapaz chega a compará-las com a imagem de um Uncle Tom (o bondoso, sereno e amável Pai Tomás, velho escravizado devotado aos senhores brancos, personagem icônico do romance de Harriet Beecher Stowe) e com a típica mammy (a zelosa, servil e rechonchuda mãe negra resignada com a sua condição subalterna, outro bárbaro estereótipo racista sempre revisitado nas artes).
Mas esse é apenas um lado da moeda. A ironia e a ambiguidade em Douglas Turner Ward reservam surpresas mais complexas. Após deplorar, causticamente, a lamentação das tias, Junie está prestes a sair quando é bruscamente chamado por Ellie, que o obriga a ouvir algumas inconvenientes verdades. Todo o conforto de Junie, da boa comida até as elegantes roupas, que ele usa em seus joviais flertes, é sustentado não exatamente pelos esmirrados salários das tias, mas pelos cautelosos furtos que as duas cometem na casa dos patrões. Ellie e Vi revelam um intrincado sistema de saques na mansão dos Harrinson, justamente por ambas, como já dito, executarem absolutamente todas as tarefas diárias e possuírem acesso irrestrito a todos os cômodos. Ambas efetivamente dominam aquele espaço doméstico. Alimentos, cheques em branco, roupas, acessórios e até mesmo móveis (!!!) são constantemente saqueados sem que os ociosos e desatentos patrões percebam. Além disso, Ellie conta a Junie que Mr. Harrinson prometera dar às empregadas uma pensão vitalícia caso elas trabalhassem para eles até a filha do casal completar 10 anos. Faltaria apenas um mísero ano para isso se concretizar. Agora tudo está prestes a ruir.
A suposta afeição das empregadas para com os patrões esconde um complexo esquema para sugar, furtivamente, parte da riqueza da casa. No âmbito doméstico, o casal é enredado por um esquema astutamente mascarado, no qual sua superioridade é burlada pelas empregadas, em um estratagema marcado pela duplicidade irônica. Ellie afirma: “I’m earning me quite a bonus along with my bad pay. It’s the BONUS that counts Junie”.
Não há maniqueísmos na dramaturgia de Douglas Turner Ward, assim como não há heróis idealizados. Há sim uma supremacia branca em toda a sua conjuntura opressiva e, no interior desse sistema, os sujeitos subalternizados desenvolvem, coletiva e individualmente, formas de resistência, artifícios e ardis (alguns questionáveis) para sobreviver. Ellie e Vi, em certa medida, esburacam o imenso muro racista e exploratório, por meio dos saques, para compensar uma série de privações e abusos. É um ambíguo jogo parasitário. Ambas dançam conforme a racista música dos Harrinson, aproveitando-se, porém, das pequenas brechas para angariarem, sorrateiramente, adicionais extra-oficiais. Porém, os pequenos saques apenas enfatizam a prodigalidade do casal branco, ao passo que sublinha a penúria das trabalhadoras. Contudo, não haveria nelas e em seus atos pelo menos os germens de uma revolta mais profunda para com a violenta desigualdade sociorracial que as circunda? Ou seriam elas desprovidas de larga consciência política e contentes com as migalhas surrupiadas?
No final da peça, Ellie, Arthur – o seu marido que apenas surge no derradeiro momento –, Junie e Vi recebem uma miraculosa notícia: os Harrinson surpreendentemente reataram. Todos celebram a felicidade do casal. Tudo voltará ao “normal”. Retornemos ao título da peça – Happy Ending. Seria esse um final feliz? Depois da crise, seria esse o “novo normal”? O teor agridoce dessa peça manifesta-se na aguda ironia entre seu título e o reestabelecimento de uma relação fundamentalmente vampiresca, sem qualquer ímpeto moralizador. Racismo, exploração do trabalho e algum comodismo são jocosamente perspectivados por Douglas Turner Ward, em um texto teatral que prima pela observação social com suas contradições.
Não há maniqueísmos na dramaturgia de Douglas Turner Ward, assim como não há heróis idealizados. Há sim uma supremacia branca em toda a sua conjuntura opressiva e, no interior desse sistema, os sujeitos subalternizados desenvolvem, coletiva e individualmente, formas de resistência, artifícios e ardis (alguns questionáveis) para sobreviver.
Em Day of Absence, Ward erige uma capciosa comédia – talvez a sua mais ferina criação - ao revisitar uma das mais espinhosas tradições cênicas de seu país, a saber: o minstrel show, desenvolvido na primeira metade do século XIX, no qual apresentavam-se atores brancos tingidos de preto (blackfaced performers) a representar, em tons grosseiramente caricaturais, o comportamento e os fenótipos de pessoas negras. Aqui, porém, conforme as rubricas da peça, é o elenco negro que se pinta de branco (white-face) para satirizar não apenas a branquitude, suas convenções e práticas sociais, mas principalmente sua supremacia estrutural, expressa em discursos, instituições, símbolos e atos cotidianos. A ironia dirige-se não a este ou aquele sujeito, mas às relações etnicorraciais em uma ordem social fundamentalmente racista. Antes, porém, de conhecermos mais a fundo esse texto, será necessário termos uma noção pelo menos esquemática do minstrel show em seus mais essenciais traços, pois, como veremos, Ward se valerá de alguns elementos desta tradição para construir a sua peça.
O minstrel show ou simplesmente minstrelsy foi uma das mais populares formas culturais da sociedade oitocentista nos Estados Unidos, cujos impactos estéticos e políticos ajudaram a consolidar um imaginário social violentamente racista, desumanizante e reducionista acerca das populações afro-americanas. Conforme conta-nos Robert C. Toll (1974), essa tradição espetacular, em síntese, nasce em um contexto histórico no qual as produções artístico-culturais buscavam captar, figurar e definir a nação e seu povo, em um desejo de reafirmar a recém-independência do território, especialmente nos 30 anos após o início da guerra entre Estados Unidos e Inglaterra, em 1812. O palco norte-americano também participará desse processo de representação de formas nativas, imagens e princípios que de algum modo materializassem a especificidade da nação. A partir de 1830, haverá um predomínio de teatralidades popularescas (espetáculos de variedades, apresentações equestres e acrobáticas, comédias ligeiras) sobre os modelos teatrais sérios e dramáticos. Além disso, o aumento da população urbana possibilitou aos empresários do agora crescente showbusiness desenvolver mecanismos midiáticos e investimentos para alimentar as demandas de uma plateia ávida por novidades e entretenimento imediato. Nessas condições, quando o minstrel show despontou, o seu sucesso foi retumbante. Robert C. Toll (1974) chega a afirmar que o minstrelsy se transformou em uma verdadeira instituição nacional.
Embora tenha sido uma invenção particularmente do norte – Nova York, Philadelphia e Boston serão expressivos celeiros de aclamadas cias. de blackfaced performers –, o minstrel show alcançará, por meio de inúmeras turnês, maiormente para o sul e oeste, diversas outras localidades do território americano. A despeito de suas muitas mutações ao longo do século XIX, é indispensável sabermos que: a prática do minstrelsy estabelecia para com sua plateia uma comunicação bastante direta, adaptando-se ao contexto específico de cada lugar, sobretudo devido às parcelas improvisadas do show (ademais, o público desse espetáculo é passionalmente responsivo e reativo, ora com vaias e urros, ora com gargalhadas, cantorias e aplausos); um show dessa natureza abrigava piadas e gracejos grosseiros, intercalados com danças, canções cômicas e burlescas, entoadas tanto individual quanto coletivamente; nas cenas em que havia diálogos, as personagens negras ridicularizadas pronunciavam as palavras incorretamente para acentuar seu aspecto inculto e infantil; geralmente na segunda parte do espetáculo, algum performer realizava o stump speech, isto é, um discurso jocoso que expressava, em tom paródico, um comentário social ou alguma observação sobre um acontecimento contemporâneo; o espetáculo se encerrava com um plantation number, ou seja, uma esquete teatral breve representando os escravizados negros em situações risíveis nas fazendas escravagistas. Depois de 1850, esse esquete final se voltará para acontecimentos políticos atuais. Em suma, o humor farsesco do minstrel show se alicerçava em uma comédia baseada largamente na fisicalidade, no histrionismo e em certo virtuosismo dos atores que, por sua vez, também dominavam instrumentos musicais, tais como o banjo, o violino, castanholas e tamborins.
Para Eric Lott (2013), tal espetáculo dialogava intimamente com as demandas emocionais e as fantasias das plateias brancas, tornando-se uma arena de agudos conflitos por meio da qual as noções de raça, classe e nação eram representadas e discutidas. Além do mais, é importante lembrarmos que, mormente (mas não exclusivamente) nos anos 1830 e início da década seguinte, os performers brancos analisavam as manifestações musicais, cênicas e coreográficas da população negra escravizada no sul para, posteriormente, incluí-las, de modo desfigurado, no palco. Em particular, as danças negras e seus princípios rítmicos eram observados pelas cias. brancas e arbitrariamente selecionados para compor uma representação supostamente autêntica de um sujeito negro sulino. Cânticos e narrativas folclóricas afro-estadunidenses também eram recolhidas pelos atores brancos. Por tais motivos, Eric Lott (2013) diz-nos que o minstrelsy foi uma invenção artística na qual a exploração das culturas negras encontrou um dos seus zênites [4]. Não nos esqueçamos: o minstrel show foi uma das primeiras indústrias do entretenimento norte-americano, um empreendimento que, particularmente nas décadas de 1870 e 1880, concentrará estratosféricos investimentos financeiros de diversos empresários, cujos objetivos serão produzir espetáculos altamente extravagantes, opulentos e cada vez mais padronizados, com fins assumidamente mercadológicos. Desse modo, a noção de apropriação cultural, como pensada por Rodney William (2019), não nos parece inadequada para examinarmos uma das bases centrais do minstrel show, embora saibamos que se trata de um termo bastante discutível.
Após essa brevíssima digressão explicativa, poderemos embarcar no texto teatral de Douglas Turner Ward: em um dia qualquer, todos os negros de uma pacata cidade no sul dos Estados Unidos desaparecem sem deixar qualquer rastro. O medo, a incompreensão e a indignação se alastram entre a população branca, que não medirá esforços para tentar solucionar o problema: onde estão os negros? É este o universo dramatúrgico de Day of Absence (Um dia de ausência, em tradução livre). As mais distintas reações emocionais dos brancos vão nos revelar certos padrões de comportamento, máscaras sociais e modos de dominação racial, grotesca e comicamente figurados por Ward, em uma comédia que deixa algumas questões irresolvidas. E este é um dos seus pontos fortes.
Day of Absence é denominada uma satirical fantasy. Já temos aqui algumas possibilidades analíticas. Primeiramente, torna-se óbvio, pelo seus contornos estético-políticos, a intenção satírica da peça, visto que a ridicularização do poder e da hegemonia é um dos pontos basilares desse texto. O mais instigante, entretanto, é o seu caráter fantástico no tratamento da realidade ordinária, incluindo aí suas violentas relações raciais. Não nos interessa, neste ensaio crítico, refletir profundamente sobre as definições filosófico-literárias de um Tzvetan Todorov (2012), por exemplo, sobre os gêneros fantástico, maravilhoso, estranho e suas interpenetrações. Mas algo no pensamento do autor búlgaro nos será relevante, a saber: a hesitação/indecisão do leitor (ou espectador, considerando a escritura cênica) face a eventos que desafiam uma definitiva explicação racional. Essa vertigem diante do acontecimento insólito acomete não apenas leitores/espectadores, mas os próprios personagens em Day of Absence. Seria possível, pelas leis da natureza, explicar o sumiço abrupto da população negra? E se levarmos em conta os processos sociais de invisibilização, apagamento, genocídio e epistemicídio que, deste ou daquele modo, varrem os corpos negros das cenas pública e histórica? Qual o sentido da ausência abordada por Douglas Turner Ward? Outro ponto merece nossa atenção: os minstrel shows do século XIX usaram largamente o nonsense, fábulas e elementos fantásticos para parodiar as culturas e sujeitos negros. Aqui, o humor nonsense adquire outra significação para desnaturalizar comicamente os dispositivos de dominação sociorraciais.
Constatado o desaparecimento repentino dos negros, os mais diversos estratos e âmbitos sociais, regidos ou ocupados majoritariamente por pessoas brancas, reagem dramaticamente, exibindo suas cavalares doses de ódio e pavor temperados com o mais sofisticado cinismo. Isso possibilita a Ward delinear caricaturalmente uma vasta tipologia social branca que, no total, expressa o colapso de um mundo baseado na exploração dos outros, os negros. Industriais, empresários, socialites (mais precisamente as southern belles, uma espécie de moçoila rica, elegante e bela, pertencente ou descendente das elites escravagistas do sul), assistentes sociais, juízes etc. lamentam, inconsolavelmente, a ausência inexplicável daqueles sobre os quais seus privilégios estão assentados. Agora vejam só a malícia de Douglas Turner Ward: em sua peça, os policiais estão irremediavelmente abatidos, porque não conseguem mais bater suas metas diárias de agressões e apreensões de jovens negros. A polícia e todo o sistema judiciário estão à beira do precipício. Quem irão prender? Quem irão matar? Alguns oficiais já temem uma demissão em massa, pois suas tarefas diminuirão drasticamente. Até a Ku Klux Klan está desnorteada! Para mostrar todo esse painel social, nosso matreiro dramaturgo arma situações ao mesmo tempo sintéticas, expressivas e risíveis, pela manipulação de personagens e diálogos teatralmente ágeis.
Ora, por que essa fictícia cidade sulina, suas instituições, empresas e padrões sociais estão ruindo? Em uma sociedade fundada na escravização de sujeitos negros, na exploração e divisão racial do trabalho, sob a égide do capitalismo, e na produção das condições de vantagens e desvantagens políticas, econômicas e jurídicas entre grupos racialmente distintos, o racismo se projeta como um modo (talvez o modo) de possibilitar a unidade nacional. Assim são os Estados Unidos, metaforizados em Day of Absence, assim é o Brasil, assim é o mundo racializado. Se a peça basilar de todo um mecanismo de criação e manutenção do poder simplesmente desaparece, então as estruturas desse mesmo mecanismo sofrerão um abalo considerável. Onde estão aqueles que ocupam os piores postos e os subempregos? Como sustentar agora o desemprego e os salários desiguais entre as populações racialmente dessemelhantes, considerando, nos Estados Unidos, todos os grupos sociais, não-brancos, subalternizados? Poderíamos formular mais um sem-número de questões que apenas evidenciam o inevitável: as estruturas do racismo são as responsáveis pela organização das formas de relação social, de subjetividade, de expropriação da riqueza e de preservação da hegemonia de determinados grupos. Para resgatarmos um exemplo histórico: Por que quando a escravidão no sul dos Estados Unidos foi abolida houve uma brusca queda da economia? Agora um exemplo da peça teatral: por que os industriais reclamam do decréscimo de seus lucros? No fundo, o que some, em Day of Absence, não são apenas os indivíduos negros. Um sistema de relações sociais fincadas na desigualdade, no privilégio e na expropriação está em crise. O que os brancos farão para resolver seus problemas? O governador disse ao prefeito dessa cidade estremecida: uma remessa de negros para suprir a falta destes. As referências histórico-sociais pululam...
O uso do white-face só se realiza integralmente no plano cênico, em que o jogo de cena, a caracterização (Ward saborosamente indica o emprego de perucas louras na didascália inicial do texto) e a atuação cômica (por vezes, farsesca) podem se desenvolver. Em sua dimensão textual, as personagens não detêm uma psicologia intrincada ou numerosos detalhes, ao contrário, são fortemente esquematizadas, representando mais máscaras ou, como dissemos, tipos sociais, do que sujeitos altamente individualizados. São caricaturas do poder. O minstrel show esboçou uma série de personagens-tipo, os quais refletiriam as atitudes exóticas dos afro-americanos, tais como: os negros estúpidos, infantilizados, compulsivamente musicais, preguiçosos e até aqueles nostálgicos quanto aos “bons tempos” nas plantations. Ou seja, uma gama excêntrica de tipos que alimentou o repertório cômico de tais espetáculos, bem como ajudou a formatar o consciente e o inconsciente da sociedade branca sobre os negros. Douglas Turner Ward dá, artisticamente, o troco, valendo-se do mesmo artifício: o estereótipo. Ora, o que é um branco? Seguindo as reflexões de Silvio Almeida (2019), poderemos dizer que o ser branco é uma posição e uma construção social que concretamente se exprime na dominação estrutural e nos privilégios sistêmicos. Ao mesmo tempo, o indivíduo branco deseja não somente ser neutro e universal, mas ao mesmo tempo precisa atribuir identidades aos outros. O white-face em Day of Absence desnaturaliza esse processo de universalização ao deformar pela comicidade a posição social dos brancos. A tinta branca parodicamente sob a pele do ator negro grita, causticamente, que também os brancos têm raça, logo, são invenções socioculturais. Sendo assim, a branquitude performa, encena jogos de poder, possui modos de ocupação do espaço público, partilha certos códigos, etiquetas, em termos conjunturais. Ward não intenta qualquer moralização ou individualização do problema. O seu white-face é um sarcástico e ácido espelho que, diante da branquitude, diz, às gargalhadas: “Observem como seus modos de dominação e de sociabilidade construíram, em vocês, máscaras sociais pateticamente hegemônicas!”.
Após o cataclisma psicossocial vivido pelos brancos, as coisas, aparentemente, se reorganizam na manhã seguinte. Raufus, o único personagem negro da peça, é avistado caminhando vagarosa e calmamente. Ao ser interrogado por dois desesperados caucasianos acerca de seu enigmático sumiço (e de toda a população negra) no dia anterior, Raufus, absolutamente confuso, responde: “Yes... ter...day? ... Yester..day...? Why... right...here...”. O enigma desconcertante encerra a dramaturgia, sustentando uma incômoda ambiguidade. O título da peça é: Um dia de Ausência. Mas o que significa presença para os grupos sociais historicamente tratados como não-humanos, invisíveis e indizíveis, os outros, os “condenados da terra”, os degredados, os intocáveis...? Nós negros não somos apenas invisibilizados, pois, quando necessário, para a manutenção da hegemonia, somos encarados como alvos hiper-visíveis. Desse modo, parece-nos estar em discussão aqui a noção mesma de humanidade em um sistema social organizado pelo racismo.
Há, seguramente, outras numerosas possibilidades de pensar este fatídico Day of Absence, mas por ora avancemos para a terceira e última peça analisada, Brotherhood.
A princípio, Brotherhood (Irmandade/Fraternidade, em tradução livre) parece ser uma mera “drawing/living room comedy”, isto é, uma peça comportadamente realista, suavemente burguesa em seu humor despretensioso, cujo cenário é a sala-de-estar de uma família branca de classe média. Pouco a pouco, essa impressão se desfaz, dando lugar a uma dramaturgia que, uma vez mais, aciona cirúrgicas ironias ao desvelar as facetas e obsessões subterrâneas de dois casais. Quando James e Luann Johnson, um simpático casal afro-americano, visita o lar dos corteses Tom e Ruth Jason, não podemos imaginar os segredos nebulosos possuídos por ambos os pares.
Ruth e Tom estão, no início da peça, apavorados. Freneticamente, os dois cobrem os móveis e objetos da casa com diversos tecidos, bem como retiram, às pressas, algumas peças de seu mobiliário para outros cômodos, em uma movimentação nervosa, desenhada como um ballet histérico, no qual o desespero do casal é incalculável. Ward não nos revela a natureza dos objetos encobertos. Nosso interesse é tanto maior quanto mais intensas são as reações comicamente medrosas dos Jason. Finalmente, os convidados chegam. James e Luann estão ostensivamente elegantes, ataviados como que dispostos a causar a melhor impressão possível.
Imediatamente desenvolve-se, entre os casais, um duplo jogo de aparências, de modo espelhado, isto é, cada casal tenta fabricar para o outro uma imagem/projeção idealizada de si. Ambos se comportam risível e estranhamente, esforçando-se para soar não apenas agradáveis, mas inteiramente confiáveis reciprocamente. É a primeira vez que o casal branco recebe o casal negro, portanto das duas partes há esse candente desejo de afigurar-se como “cidadãos de bem”. O que estaria por detrás de uma tão exagerada postura?
De um lado, James e Luann, os aparatados convivas, querem se aproximar do estilo de vida de seus anfitriões, tentam apreender os códigos e etiquetas de uma classe-média branca educada e dotada de certo bom gosto. Luann diz para Tom e Ruth: "You have no ideia how limiting our old environment was”. É possível identificar neles certa mentalidade colonizada, que não apenas louva os valores e símbolos dessa sociedade branca “civilizada”, como menospreza sua própria condição para ascender a um patamar mais elevado de humanidade. Os seus trajes, fortemente vistosos, são expressões dessa vontade de apresentarem-se realmente dignos, ou mais próximos desse ideal. O desejo de encarnar a “máscara branca” com todos os seus distintivos é magistralmente representado por Ward no momento em que os anfitriões, para justificar o estranho fato de terem todos os seus móveis cobertos, diz aos convidados que essa é uma nova tendência decorativa. O impressionado casal negro já quer logo absorver esses emblemas estético-culturais (ou Capital Cultural, para ficarmos com Pierre Bordieu) a fim de se mostrarem integrados ao mundo branco.
De outro lado, os Jason querem ser extremamente receptivos, almejando dar, às suas visitas, o melhor tratamento possível. Mas a situação não colabora. O bizarro aspecto da casa, somado ao comportamento ansioso e temeroso do casal branco, cria uma relação deliciosamente cômica. Ruth e Tom, é evidente, querem esconder alguma coisa. As tresloucadas tentativas para disfarçar seus medos apenas reforçam o incômodo. O receio dos anfitriões é tamanho que eles chegam a oferecer o penico das crianças só para impedir Luann de ir ao banheiro. Em meio a tais esdrúxulas situações, os casais trocam elogios pateticamente afetados, como se estivessem encenando personagens de si mesmos para seduzir uns aos outros. Vejam o que diz Ruth aos negros: “Now, we aren’t going to permit you to be overmodest. You’re the catalyst which will metamorphize our existence. Any other attitude is completely retrogressive”.
Douglas Turner Ward arquiteta muitíssimo bem uma atmosfera permanentemente tensa, sustentada por um diálogo ágil que, a um só tempo, caracteriza as inseguranças recíprocas e a boa aparência, a duras penas, sustentada. Todos estão visivelmente desajustados. O esforço para maquiar as instabilidades ganha, nas mãos de Ward, uma acurada dimensão cômica por meio da qual as convenções e performances sociais são expostas ao ridículo. Ao cabo, se-nos-parece que as personagens estão sutilmente se analisando, se sondando, esquadrinhando o ambiente para, enfim, enxergarem melhor onde pisam.
A noite avança, e as visitas finalmente partem. Mais uma vez, Ward nos reserva uma surpresa. Sozinhos, Ruth e Tom urram de alegria, extravasando, entre gargalhadas e abraços efusivos, todo o temor represado. Quando o casal descortina os objetos, a cena adquire uma movimentação alucinada, como se ambos estivessem em um profundo frenesi. O que vemos, afinal? Uma horrenda coleção de artigos, estatuetas e objetos alusivos à escravidão e às plantations. Os mais sórdidos fetiches escravocratas estão ali materializados. Pela via do grotesco, Ward traz à luz o saudosismo deformado e violento de uma nação construída sob a égide da exploração de corpos negros, em que o legado escravagista ainda se mantém presente. Além disso, estamos falando de um país, assim como o Brasil, que insiste em manter publicamente estátuas de escravocratas notórios, como Jefferson Davis [5], entre outros. Ou seja, há uma descarada intenção de defender certos símbolos históricos, preservar, sem críticas, uma memória cultural genocida, naturalizando-a no espaço público. Os desejos supremacistas de Ruth e Tom, em sua objetificação da violência racial, é o sintoma de uma realidade muito maior, embebida de sangue negro. A dissimulação dos Jason é também um dos muitos traços do racismo em sua dimensão velada, obtusa, mas não menos brutal.
Nova surpresa. Emergindo da escuridão, em um qualquer lugar, vemos James e Luann. Mas não os cordiais visitantes. O homem comprime violentamente o pescoço de alguém para, logo em seguida, esfaqueá-lo. A mulher maltrata uma boneca de voodoo feita à imagem e semelhança de Ruth. Também eles mostram-se distantes daquela doçura inofensiva. O humor cáustico de Ward não poupa ninguém. A fabricação de aparências e de comportamentos convencionais está no cerne de sua crítica. O real em sua multiplicidade guarda muito mais contradições acinzentadas, do que supõe a visão maniqueísta. Aqui, novamente o próprio título da peça suscita ironias amargas: Brotherhood. Existiria alguma fraternidade entre os dois casais? Nosso autor talvez esteja nos sugerindo que entre tantas incoerências, contradições e interesses antagônicos, socialmente, não há política da boa vizinhança ou etiqueta capaz de solucionar conflitos radicais.
Douglas Turner Ward é hoje um clássico do Teatro Negro Norte-Americano, tanto pelas suas virtudes dramatúrgicas quanto pela sua importância na formação de gerações de artistas negros e negras, no âmbito da Negro Ensemble Company que, por sua vez, vêm irrigando a vida cênica dos Estados Unidos por décadas a fio. Temos, neste texto, um recorte (contundentemente significativo) de sua produção literária. Uma dramaturgia implicada nos processos sócio-políticos de seu país e que, sob certos aspectos, pode ser pensada pelas lentes estéticas do absurdo. Finalmente, em Ward, a ironia não se resume a recursos textuais ou a figuras de linguagens, é uma atitude perante um mundo naufragado em pungentes contradições.
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[1] Douglas Turner Ward é um multipremiado ator, dramaturgo, produtor, professor e ensaísta, nascido em 1931, Burnside, Louisiana. A sua carreira se inicia no último quartel da década de 1940, na qualidade de jornalista envolvido nas lutas por direitos civis no Harlem, contexto no qual ele escreve suas primeiras esquetes teatrais. Já nos anos 50, Ward participará, como ator, em importantes encenações da moderna dramaturgia estadunidense, como The Iceman Cometh (1956), de Eugene O’Neill; A Land Beyond the River (1957), adaptação de Loften Mitchell; A Raising in the Sun (1957) , de Lorraine Hunsberry, entre outras produções no circuito Off-Broadway e na própria Broadway. As suas duas primeiras peças, montadas profissionalmente, A Day of Absense e Happy Ending, ambas de 1965, alcançaram um estrondoso sucesso, projetando o nome de Douglas Turner Ward no cenário teatral nacional. No ano seguinte o jornal The New York Times convida-o a escrever um artigo que lançará os germes para a cia. que ele cofundará em 1967, a saber, a Negro Ensemble Company. A sua produção dramatúrgica é caleidoscópica. Além de suas peças já mencionadas, Ward escreveu ainda The Reckoning (1968), Brotherhood (1970), The Redeemer (1983) e uma trilogia dramática a respeito da Revolta do Haiti – The Haitian Chronicles (2019).
[2] O icônico African Grove Theater, de Nova York, fundado em 1820 por William Alexander Brown, foi, acredita-se, a primeira cia. teatral fundada por um elenco integralmente negro. O seu repertório consistia basicamente em peças clássicas do repertório ocidental, incluindo William Shakespeare. A cia. foi constantemente vítima de perseguição pela população branca, bem como de ataques policiais.
[3] A Negro Ensemble Company é uma das mais notórias cias. negras a atuar profissionalmente nos Estados Unidos, tendo sido agraciada com os principais prêmios teatrais de seu país, entre os quais destacam-se o Tony Award, o Pulitzer Prize for Drama, o Obie Awards e o Drama Desk Awards recebidos em diversas ocasiões. Ao longo de sua trajetória, a NEC alcançou sólida projeção nacional e internacional, consolidada em numerosas turnês mundo afora. Os seus objetivos: cimentar uma cia. teatral orientada e gestada majoritariamente por profissionais negros; estabelecer um altíssimo nível estético em suas montagens; formar gerações de profissionais teatrais negros nas mais distintas áreas (atuação, direção, dramaturgia, técnica de luz e som, etc). Os workshops mantidos pela Negro Ensemble Company possibilitaram o aparecimento de uma série de atores negros, que ali puderam se desenvolver artisticamente, como os aclamados Phylicia Rashad, Denzel Washington e Esther Rolle. A cia. sempre foi alvo de duras críticas por parte de alguns setores da comunidade afro-americana, pelo fato de ter sido, por muitos anos, financiada pela Fundação Ford (símbolo do capitalismo e do status quo); contar, entre os seus fundadores e diretores, com um homem branco (o empresário Gerald Krone); não ter adotado, segundo algumas perspectivas, uma postura efetiva e diretamente combativa do ponto de vista político. Entre os seus principais sucessos estão as peças: Ceremonies in Dark Old Men (1969), de Lonnie Elder (1927-1996); The River Niger (1972-73), de Joe Walker; A Soldier’s Play (1981) e The Zooman and the Sign (1980) ambas de Charles Fuller (1939-).
[4] De acordo com Robert Hornback (2018), os estudos sobre o minstrel show vão se modificar bastante ao longo do tempo. Hornback (2018) destaca as três principais correntes: 1) críticos e artistas que irão celebrar tais espetáculos como uma forma artística autóctone por meio da qual a população afro-americana foi parodiada com precisão; 2) correntes revisionistas que apontaram o racismo e as distorções patentes no blackface; 3) pesquisadores que sublinham a dimensão integrativa, inclusiva e intercultural do minstrel show, afirmando que houve, nesse tipo de espetacularidade, uma certa identificação dos performers e plateias brancas com as populações negras e suas culturas. Pensamos que esta última posição defende argumentos no mínimo polêmicos (ou excessivamente idealistas), pois por mais que atores e públicos brancos tivessem algum interesse ou real admiração pelas expressões culturais negras, isso não modificou substancialmente a subalternização, ridicularização e a exclusão concretas sofridas pelo povo afro-estadunidense.
[5] Estátua retirada em julho de 2020, após calorosos protestos.
Referências
ALMEIDA, Silvio. O que é Racismo Estrutural. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.
GAYLE, Addison Jr. The Black Aesthetic. New York: Double & Company, 1971.
HORNBACK, Robert. Racism and Early Blackface Comic Traditions: From the Old World to the New. Atlanta: Palgrave Mcmilliam, 2018.
LOTT, Eric. Love & Theft: Blackface Minstrelsy and the American Working Class. Indiana: Oxford University Press, 2013.
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.
TOLL, Robert C. Blacking Up: The Minstrel Show in Nineteenth Century America. Minesota: Oxford University Press, 1974.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 2012.
WILLIAM, Rodney. O que é Apropriação Cultural. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.
Guilherme Diniz é pesquisador, ator e crítico teatral. É mestrando em Literatura Brasileira pela FALE/UFMG. Como crítico, colabora no site Horizonte da Cena (BH/MG). Estudou Literaturas e Dramaturgias Africanas de Língua Portuguesa na Universidade de Coimbra, pelo programa Abdias Nascimento/CAPES. É atualmente o Diretor Artístico do Teatro Municipal Geraldina Campos de Almeida, de Pará de Minas /MG.
Ilustração: Fernanda Maia
Belo texto!
Maravilhosa ilustração!