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Editorial: Sobreposições de vermelho




Para Erasmo Carlos e Gal Costa



A Cupim 5 começou a ser publicada em julho e agora, em novembro de 2022, termina o seu número. Foram quatro meses de distância entre o primeiro texto e o último. Desde o início, nas reuniões de curadoria, ficou claro para nós que o vermelho seria a cor que nos conduziria. Havia, nos textos escolhidos, um sentido comum relacionado ao corpo que deseja, ao corpo no cio, ao corpo que ama, por isso decidimos que não haveria cor mais adequada que traduzisse essa potência. O que ainda não desconfiávamos, no entanto, era como essa cor ganharia sobreposições, variações de tom, nuances de sentido, ao longo desses quatro meses.


De julho a novembro, o Brasil avermelhou-se. O contexto eleitoral ferveu os ânimos da população, tanto coletiva quanto individualmente. Acompanhamos a crescente do conflito entre extrema-direita e esquerda, que rendeu a eleição mais acirrada da nossa história. Esse tensionamento quase palpável esteve presente nas manifestações públicas, na guerra informacional das redes sociais, nos corações dos eleitores e eleitoras e se abateu como um choque traumático no psicológico de todos nós. O discurso de ódio, a violência, a perseguição política e o assédio eleitoral tornaram-se banalidades no noticiário nacional e fizeram vítimas fatais, principalmente entre aqueles que vestiam suas camisetas vermelhas. O espírito do neofascismo rondou nossos piores pesadelos, e o Brasil parecia condenado a repetir a velha história colonial. Entretanto, em 30 de outubro de 2022, o Brasil avermelhou-se.


Timidamente, tentando organizar o sentido em meio ao caos, tentando desesperadamente fazer brilhar alguma estrela, nos mantivemos publicando os oito textos deste número. O primeiro – “Ouro de peixe”, de Pedro Melo Rocha e Teresa Melo – trata-se de um conto fantástico, monstruoso, úmido de mistério, capaz de nos tragar para a profundidade do suspiro amoroso. Outra narrativa breve que marcou esta edição, “Dedão do pé”, de Leonardo Paiva, abre o tampo do dedão de um garoto, faz jorrar o sangue, para revelar que o desejo, sempre na contramão de tudo, resiste, insistente.


Além das narrativas, quatro poetas tornaram ainda mais úmido esse corpo. Bárbara Nacif faz sua estreia lírica através de “Amavisse”, poema que dá forma sublime ao erotismo sagrado/profano de todos os dias. Jacyntho Lins Brandão, reconhecido professor de literatura da UFMG, compõe uma espécie de périplo da fumaça (Paris, São Paulo, Pindorama) ao reunir, em “Ode ao fumo”, diversas imagens e reflexões em torno do cigarro. Por sua vez, Yasmin Bidim, em “Poemas reunidos”, escreve a partir do estilo de outros(as) poetas (Marília Garcia, Marcos Siscar e Amanda Ribeiro), rascunhando, assim, uma cartografia dos encontros – um corpo-a-corpo com o tempo e com o texto, nos intervalos, nas brechas entre um verso e outro. Por fim, Malu Grossi Maia, em “Lugar comum”, nos convida a sentar numa cadeira vazia e numa cadeira ocupada, jogando com as possibilidades desse objeto e questionando quais atritos e fricções (ou ficções?) podem estar orbitando suas presenças e ausências.


Nesse tecido, contamos ainda com o texto dramatúrgico “Concord 248” e com um ensaio fotográfico de Tatiana Bicalho, artista que investiga os inferninhos do baixo centro de Belo Horizonte (MG). A autora, em seu texto, parece criar uma voz para o espaço fotografado, a voz de uma mulher madura responsável por limpar "[...] guimbas e restos/outros cigarros,/ porra, pó, saliva" e o amor que sobra no chão de um quarto de hotel. Outra investigação acerca de afetos contra-hegemônicos está presente na obra de Rodrigo Mogiz, artista entrevistado por Douglas Ferreira e fotografado por Marco Marinho em “O ateliê de Rodrigo Mogiz”. Porém, mais do que uma conversa sobre sua obra, a proposta foi entrevistar o lugar: "O que pode contar sobre a obra o ateliê de um artista?”. Assim, ao dirigir perguntas às paredes e aos objetos do pequeno cômodo de trabalho de Rodrigo, traçou-se um panorama da produção desse artista belo-horizontino que cruza as linguagens do bordado, da pintura e do desenho em produções que questionam a heteronormatividade.


As fricções provocadas no interior desses textos flertaram ainda com a captura, mastigação, corte, recorte, misturas e sobreposições mobilizadas pelos artistas visuais Fernanda Maia, Isabela Righi, Marco Marinho, Rogério Rodrigues e Vinícius Ribeiro, que, comunicando-se também nas bordas do que estava escrito, deram cor e volume ao que escapa e jorra quando o que entra na lâmina cotidiana é a carne.


A Cupim, que se estendeu ao longo desses meses, se coloca sempre na posição de experienciar a dilatação do tempo na recepção literária, um tempo aberto aos acontecimentos, ao que acontece no fora-do-tempo. Seguimos organizadores de um corpo-inseto que perambula pelo mundo à procura de fazer do alimento uma caça diária, coletiva.


Antes de dizer adeus à Cupim 5, a essa edição catalisadora dos afetos, reafirmamos o papel da cultura, da crítica e especialmente da literatura na disputa cotidiana pelo bem-viver. A brasilíada continua, sigamos com ela sem jamais esquecer que é


Preciso ter olhos firmes

Pra este sol, para esta escuridão

Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso




01 de dezembro de 2022




 

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