Leonardo Paiva
Chute mal calculado da canhota inábil, abriu a tampa do dedão – o sangue flamenguista espichado no meio-fio.
Quem fez o socorro foi o Jonas, vizinho recém-chegado do seminário. Pegou o moleque pelo braço, meteu o pé embaixo da torneira, correu para apanhar algodão, oxigenada, rolo de gaze.
Filete de unha pendurado, isso apontando era o osso? Viu-se amputado, manco, vivendo numa matéria de sonho enquanto os outros meninos, homens já feitos, corriam no campo verde. Nunca mais pelada. O sonho de jogar profissional – como muito queria o pai – escorria pelo ralo.
No impulso do medo, pediu a confissão, Jonas assentiu o falso sacramento. Declarou uns terrores para não ser castigado, seus segredos imundos de dias mandando ver no vestiário do estádio – de pau-com-pau com Paulinho Durão.
Sinal da cruz, raspadas da pá de merthiolate abençoado, bocão barbado demorando na raiz do talho.
– Está perdoado, meu filho.
No seu fusquinha levou o dedo embolado na enfermaria, depois o devolveu para a casa.
A mãe insistiu que ele ficasse para um café, faria um bolinho de chuva, em agradecimento por cuidar tão bem do seu menininho. Teve que negar porque estava com compromisso, mas amanhã, sem falta, passaria para comer o bolinho e saber como andava o travesso.
O moleque passou o dia estropiado vendo desenhos, olhos na pesca por causa dos remédios, o pé num prédio molengo de almofadas – o beijo santo, insistente, empuxando os pontos da costura.
Leonardo Paiva nasceu em 1989 nas Minas Gerais. "Dedão do pé” compõe a plaquete inédita Saco de gatinhos.
Ilustração: Rogério Rodrigues
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