Por Manuela Infante
Tradução: Aléxia Prado
PRÓLOGO
Havia uma época em que temíamos os peruanos. Havia uma época em que temíamos os policiais, havia uma época em que temíamos a tecnologia, a própria. Para que mencionar que tivemos medo dos objetos que voavam sem identificação, tememos que caísse um meteorito em nossa queridíssima Ilha de Páscoa. Também tivemos medo de contrair AIDS, houve uma época, inclusive, em que temíamos o horizonte. Tivemos tanto medo de equivocar-nos ao crucificar, medo de que nos fosse cair uma bomba, medo do fogo também houve. Medo de ficar sem água, medo de ficar sem o vazio. Tivemos medo do Chupa-cabras, do Charles Manson, e paremos aqui com os indivíduos. Medo de comer alface sem cozinhar, medo de encontrar uma estrela de David na jaqueta. Tiveram tantas épocas com medo ao frio. Bom. Houve uma, juro, em que temíamos os peruanos.
DOMINGO 18 DE MAIO. 9:00 PM. DEQUE. RELÂMPAGOS.
PRAT
Tá bem, mamãe, pare com isso, ok?, saia. Te prometo que está tudo limpinho, os meninos estão dormindo, acredito. Ah! e escuta, o Bucarest precisa que você pingue nele umas gotas para os olhos, disse que o sol reflete, olha, se quiser ficamos nós dois acordados, podemos escutar a rádio, lá na sala de jantar, cantam às vezes, às vezes algum barco pede ajuda e é quase como ver televisão às doze horas e meia do dia. Mamãe, te prometo que não existe outro lugar em que eu possa estar, estive pensando tanto e não me ocorre, e foi a senhora quem me disse que queria estar comigo. Olha, quando puder descemos da nave, te prometo que não tenho força, te prometo mamãezinha que não tenho vontade, não faria nada tonto mãe, porque não faria nada.
CABINE
ROBINSON
Deve ser essa noite.
PRAT
Quem sabe? Tenho a minha mãe doente, não sei onde está.
ROBINSON
Eu não sei, capitão, mas poderia jurar que escutei dizer que o mar não é lugar para fêmeas.
PRAT
Pois bem, o lugar dessa fêmea é com o pedaço de vira-lata que um dia ela resolveu parir, e eu não tive mais opção além do mar, porque nenhuma opção me quis, e essa história não é chave, não existem histórias chaves, assim como não existem batalhas chaves. Entende que se fosse por mim você seria o capitão e o rei dessa nave, um desses reis noruegueses que comem pequeníssimas rações de especialidades. Escuta, não tenho idade para ter honra. Não tenho idade para querer outra mulher que não seja a minha mãe.
ROBINSON
Olha, senhor, se me permite a estupidez, penso que o senhor é um jovenzinho muito honesto, penso que sua mãe deve ter sido boa como um pão, mas essa batalha é chave como esse momento em que a maioria dos homens se tornam homens sem nem sequer saber, e que, ao parecer, o senhor não conhece.
PRAT
Não banque o pai, Robinson, que eu posso levar a sério...
ROBINSON
Não banco senhor.
PRAT
Então, encontre-me a minha mãe e comandarei essa nave como Deus manda (Robinson o bate, Prat cai no chão).
ROBINSON
Se erga, por favor, capitão (Prat se levanta). Senhor, farei o que for necessário (sai).
MOMENTOS DEPOIS.
BUCAREST E JUÁREZ NA CALDEIRA
JUÁREZ
Como chegou até aqui?
BUCAREST
(Pausa) Sei alguns caminhos de memória...
JUÁREZ
De memória... Então nunca viu nada?
BUCAREST
...
JUÁREZ
Então os óculos nunca te serviram?
BUCAREST
Não para ver.
JUÁREZ
E a mim, me vê?
BUCAREST
O senhor me cai bem pelo sotaque.
JUÁREZ
Não, se eu nasci em Santiago.
BUCAREST
Ah.
JUÁREZ
E o mar?
BUCAREST
O que tem o mar?
JUÁREZ
O vê? O mar, o vê?
BUCAREST
Do mar não tem nada para ver. Uma vez visto já se viu tudo, o resto é memória.
BUCAREST
Por isso vim te buscar... eu tenho que ir lutar, na melhor das hipóteses perco a outra perna e fico par (riem).
JUÁREZ
Vem me buscar para que sejamos heróis.
BUCAREST
Não, Juárez, o herói sempre é o capitão.
JUÁREZ
E o cozinheiro?
BUCAREST
É o que o alimenta para ser herói.
JUÁREZ
E o engenheiro?
BUCAREST
É o que calcula para que ele seja herói sem nenhum incidente.
JUÁREZ
Então também temos algo de heróis.
BUCAREST
Sim, também temos.
DOCUMENTO OFICIAL: O DISCURSO
Senhores, honrados companheiros de batalha, meninos:
Quisesse dizer que eu não tenho filhos, mas que entendo. Tenho uma fazenda no sul. Meu pai morreu de doente na fazenda do sul, como morrem os pais. Todos os meus irmãos morreram, quatro irmãos senhores. O primeiro morreu porque nasceu prematuro, como nascem os primeiros, mas nasceu vivo e então morreu, de tanta luz ou o bateram tão forte nas costas e o ar o levou ao outro mundo. O segundo nasceu saudável, mas apenas soube entender as palavras “órfão de primeiro”, morreu de pena, de um pouco de raiva talvez e sem saber se ser órfão era culpa sua ou do que o deixou órfão ou do papai que nunca conheceu ou do presidente... perdão, em qual estou? O terceiro, ou seja, recém morreu o segundo. O terceiro? Divertido, os do meio, bons para a gracinha, não é? Suicidou. Lá pelos dezoito anos, como morrem os que têm dezoito, ou, bem, os do meio, ou os bons para a gracinha? Enfim, o que aconteceu é que ele não suportou mais os cochichos do tio Agustín e os cozinheiros “é impressionante esse menino, que ainda segue vivo com o histórico que tem”. Morreu por dor de antecedentes, prefere dizer minha mãe. Bom, e o quarto por não ir contra a corrente, é compreensível, vai acumulando o peso. E eu, que não cheguei a conhecer ninguém, nasci herói. “Vingar o sangue”, dizem.
Os irmãos não se acusam, senhores. Se eu tivesse sido o primeiro ou órfão ou suicida ou obediente não teria que ser o capitão de ninguém. Para mim o heroísmo aconteceu por descartes, estamos claros? E se não quero?, que?, me faço passar por fraco?, o pobre coitado? Não, senhores. Não serve, porque aí o tio Jacinto pesca a um e o batiza no mar, o unta na água salgada a cada quatro dias e manda cartas para a mãe dele “que o menino está muito bem aqui em Valparaíso, que está maior e mais forte, que come como um cavalo...”, e tudo isso. Meu Deus, se tivesse sido mulher não teria que dar importância para tanta besteira! Senhores, não se desesperem, o ponto é o seguinte: quando se tem irmãos assim, um não pode se passar por louco, não pode morrer de câncer, não senhor, o papel come e caga, o papel, papel, PAPEL, se o digo bastantes vezes aposto que soa como outra palavra. Papelando deveria ser o meu nome. O que é isso de Arturo, se eu de Arturo não tenho nada, o Arturo o meu avô levou com ele à tumba e o Prat ficou com os primos distantes dos meus netos, ou alguma ferreteria turca ou uma frota de ônibus no litoral central. Dizia a vocês que eu entendo, a contenda é desigual, assim são as contendas, senhores, mas até que não apareça minha mãe não sairá da minha boca nem da boca de nenhum dos meus subordinados nenhuma palavra que se pareça nem a fogueira, está claro? E que Viva Chile!
QUARTA FEIRA 21 DE MAIO. 3:00 PM. CALDEIRA
PRAT
Quem continua vivo, Graziet?
GRAZIET
Todos, Prat.
PRAT
Está me dizendo essa nave vai afundar com todos vivos, Graziet? Você se tornou um imbecil?
GRAZIET
Talvez nos salvemos, Prat.
PRAT
É isso, quer ver seus filhos, sua descendência, carne de sua carne, você é um bobo, anteolho do seu maldito anteolho, para que os teve, Graziet? O que quer deles? Sua memória de passarinhos? É isso? Quer ver seus filhos, Graziet?
GRAZIET
Preferiria que meus filhos me vissem, Prat, desfilando, se é possível.
PRAT
Poderia me fazer carinho, Graziet?
GRAZIET
Como, Prat?
PRAT
Na cabeça, com sua mão, assim, cafuné, entende?
GRAZIET
Está bem (o acaricia). Você tem um buraco aqui, Prat.
PRAT
Se chama moleira, Graziet.
GRAZIET
E pra que serve, Prat?
PRAT
Não sei, Graziet.
GRAZIET
Você faria em mim, depois, cafuné, Prat?
PRAT
Não faço bem.
GRAZIET
Como sabe?
PRAT
Porque quando faço sempre penso que estou fazendo mal.
GRAZIET
Você será importante, Prat.
PRAT
Sei disso, Graziet.
GRAZIET
E por que você, Prat?
PRAT
Não sei, Graziet.
GRAZIET
Isso quer dizer que se eu fosse importante eu saberia, Prat?, ou que se eu fingisse que sei terminaria sendo importante, Prat?
PRAT
Faço agora o cafuné?
QUARTA FEIRA 21 DE MAIO. 6:20 PM.
O QUE RESTOU DA CABINE
PRAT
Tenho algo a dizer, Crisp (levando a mão ao bolso esquerdo de sua jaqueta), tenho aqui o meu...
JEAN CRISP
Te falta um botão, meu capitão, não pode dar seu discurso sem um botão.
PRAT
Não, está bom, gosto assim...
MARINHEIRO 1
Será uma honra que use a minha (trocam a jaqueta).
PRAT
Senhores...
JEAN CRISP
Silêncio!
PRAT
Senhores... (leva a mão ao bolso) Um segundo por favor... (fica em branco)
JEAN CRISP
(Ao ouvido) Meninos...
PRAT
Meninos!
JEAN CRISP
A contenda é desigual…
PRAT
A contenda é desigual!
JEAN CRISP
Mas ânimo...
PRAT
(Desconcentrando-se) Ânimo.
JEAN CRISP
E valor...
PRAT
Valor.
JEAN CRISP
Até o agora nenhum barco chileno arriou jamais a sua bandeira, espero pois que não seja esse o momento de fazê-lo...
PRAT
(Olhando fixamente ao barco inimigo) Espero então que... (por baixo) estamos nos movendo ou...?
MARINHEIRO 1
O que diz, senhor?
JEAN CRISP
(Sempre a ouvidos) Por minha parte os asseguro...
PRAT
Por minha parte os asseguro... (por baixo) Estamos nos movendo ou eles que estão? Quem... quem está na direção?
MARINHEIRO 1
Sua mãe, capitão.
Telão
Manuela Infante (1980) é nascida em Santiago, Chile. Formou-se em Teatro pela Universidade do Chile e é mestre em Análise Cultural pela Universidade de Amsterdam. É dramaturga, diretora, atriz e especialista em música. Destaca-se no teatro contemporâneo e ganha reconhecimento na cena internacional especialmente por extrapolar conceitos absolutos da arte e da história oficial, como em sua última peça, Estado Vegetal (2017).
Prat (2001) e Juana (2004) foram publicadas em conjunto. Ambas peças estão no único livro de Manuela Infante, Prat, seguida de Juana (2004). Não há tradução para o português brasileiro, e o texto apresentado é apenas um trecho da obra.
Aléxia Prado é graduada em Letras espanhol e mestranda em Estudos Literários pela Faculdade de Letras, UFMG. Tradutora e admiradora das literaturas latino-americanas, encontra nas artes dramatúrgicas e produções femininas um espaço de respiro e novos caminhos.
Ilustração: Rogério Rodrigues
Comentários