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Quando usar Deus?

Por Diogo Aloni





Derradeira hora. Julinho precisava separar os brinquedos que continuariam sendo seus dos que deveriam ser doados para sei lá quem e por quê, mãe? Ele se perguntaria internamente dessa vez, já que tal situação não era mais, nem de longe, nova, e não aceitaria — de jeito nenhum! — desculpas.


As dúvidas latejavam na cabeça de Julinho como mosquitos em noite de calor. Seria o tão desesperado adeus do boneco do Homem de Ferro? Bem, os filmes desse super-herói já envelheceram, Julinho, pensava de si para si, os amigos já nem o desejam tanto, e o polegar da mão esquerda encontra-se em outro lugar, não onde deveria, na mão mesmo, pois se quebrara em uma aventura na rua Princeton, aquela lá, bem imaginária. Ok. Podia ser o fim do Homem de Ferro. Mas calma.


E o boneco de pano do Minecraft, como fica, hein? Afinal se estou doando brinquedos antigos… é porque já não sou mais aquela criança, criança, sabe? Sou criança maior!


Tornara-se um pré-adolescente? O que isso queria dizer? Vira na escola que nessa fase (que esperava com gigantesca apreensão) os pelos cresciam de todos os lados do corpo: pernas, braços, rostos, sovacos, quem sabe até na bunda. Ele vira em fotos comparativas de antes e depois, com seres de braços compridos, narizes extensos, peles amareladas, cabelos desgrenhados, dentes maiores do que a boca. O prenúncio de monstruosidades.


Olhava para si diante do espelho (agora) e parecia demorar ainda alguns anos aquela escabrosa adolescência. O espelho enxergava um corpo ainda normal. Nenhuma protuberância pululando na face, nenhum dente enorme capaz de abocanhar madeira, ferro, materiais resistentes de toda forma e espécie. As orelhas, então, pareciam ouvir somente o que já se ouvia mesmo: a mãe chamando, o Bob Marley do pai.


Enfim, o boneco de pano do Minecraft poderia ir embora também, por que não? Já tinha cumprido o seu papel.


Ai, que alívio. Um boneco na caixa. Estava no caminho certo. Tinha conseguido, finalmente, colocar um brinquedo (sim, só um, um começo) para a doação. Mas a caixa parecia tão grande. Para que ela enchesse tinha que pôr brinquedos pra caramba, ele pensou, já que pra caralho só entraria em seu vocabulário dois anos depois. Talvez o pato de borracha da infância finalmente encontraria os irmãos bonitos, afinal ele era o feio.


Uma luz! Pelo tamanho da caixa seria prudente colocar brinquedos enormes, os maiores possíveis, pensou de novo. Assim, menos brinquedos iriam embora. O primeiro estava correto. Aquele boneco do Minecraft era gigantesco; ele sempre entrava no mundo imaginário como um gigante, e aí sempre havia de ter um gigante nas histórias, e elas ficavam repetitivas, e sempre aparecia Davi para amarrar os pés do gigante e tirá-lo do arranha-céu que era o seu domínio. Não era comum o uso de personagens bíblicos nas brincadeiras; Batman, Homem-Aranha ou nomes inventados como Homem Gosma ou Mulher Leão apareciam com mais frequência. Só que em horas difíceis de resolver calhava apelar para Jesus. Mas usava poucas vezes Deus na Terra, para não ser em vão, como a mãe dizia. Parecia que ela não se importava tanto com o "deus me livre”, então essa frase surgia quando algum personagem se metia em grandes problemas: deus me livre, o personagem dizia. E, do céu luminoso, uma voz cândida livrava o personagem de todo o mal. E costumava ser tão poderosa a bênção que cordas se desamarravam, carrascos se arrependiam, guilhotinas paravam de funcionar segundos antes de degolar nosso personagem — ufa. Enfim, brinquedos enormes. Brinquedos gigantes.


O ferrorama era um monstro de grande. Várias peças de trilhos para formar um trilho ainda maior. Solitário, o ferrorama preencheria a caixa, e aí até o Minecraft poderia voltar à vida. Além do mais, que mal faz um gigantinho aqui, um gigantinho ali, ah, qualquer coisa chamava Deus; desde que sua mãe não soubesse, poderia até ser em vão. Pronto, em todas as histórias Deus aparece e termina bem. Ia economizar criatividade. Criatividade além da conta atrapalha, as histórias nunca terminam. É invenção pra caramba, toda hora aparece uma fabulosa ideia, um caminho tortuoso, um escalafobético personagem. Deus chegaria trazendo o fim. E fim. Hora de almoçar, de lanchar, de jantar, de dormir. Ia melhorar o sono. E com isso aprofundar os sonhos. Nestes poderia continuar as brincadeiras, e saberia que Deus chegaria depois que o despertador gritasse avisando a hora de ir para a escola. Pronto, era isso. O ferrorama na caixa e todos os outros brinquedos na vida.


E foi ajuntando as peças do ferrorama, e aquilo parecia infinito. E o ferrorama era vermelho e preto e imponente. E pensou em quando e como ganhou o ferrorama. No aniversário de seis anos. E essa situação de agora parecia tão difícil quanto as divisões de números enormes. Como é difícil dividir! Ser uma coisa e o ferrorama ser outra. Pior ainda, ser de outro alguém. Não podia pensar assim, deveria ser bom com as pessoas. Havia crianças que não tinham brinquedos. Nunca chegou a conhecê-las, porém imaginou que seria uma vida muito triste não ter brinquedo, então tinha, sim, que doar, ademais brinquedo não faltava. Tinha mais brinquedos do que amigos. Quando brigou com o melhor amigo, a mãe dissera sobre crianças sem amigos, e logo decidiu reatar a amizade, porque não ter amigos deveria ser medonho, era preciso ter amigos e brinquedos.


Doaria ou não o ferrorama? As vagonetas nas mãos e as dúvidas na cabeça, tão difíceis como as operações matemáticas. As vagonetas na cabeça e a voz da mãe chamando-o para o almoço. Lembrou-se da fome ao ouvi-la, e deixar de comer poderia ser a pior das coisas, a barriga doía, sentia-se mole e sem vontade. Não ter amigos, não ter brinquedos e sentir fome eram as três piores coisas do mundo; matemática, agora, parecia moleza. Já a fome ascendia ao primeiro lugar do pódio. Tinha que matá-la. Caso viesse a precisar, usaria Deus. Por sorte o almoço já estava na mesa.




 

Diogo Aloni nasceu e vive em Belo Horizonte. É ficcionista.


Ilustração: Isabela Righi


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