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Manifesto & Sobressaltos

Por Clara Amorim



MANIFESTO


Sonho uma figueira em meu quintal

Não pelo tempo contado em centenas

mas a porosidade dos figos


Serão eles meu

decreto íntimo pelo direito

à livre suculência

à obscenidade dos seus vermelhos


Não, não construirei fontes

nem poços onde lançar os desejos –

a sede nasce telúrica

me sube desde abajo

do mais baixo possível

ao mais longe dos olhos


Insistentemente

repito

plantarei todos

os caroços

de abacates

do mundo


A recusa de pagar o preço

do peso que a natureza dá

à invenção do deleite

Povoarei minhas terras de

impagáveis texturas

afirmando os direitos infinitos da língua.




***




SOBRESSALTOS



1.


Uma rocha em chamas

que pintasse de laranja a noite

atravessando o céu

e invadindo todas as casas

seria antes facilmente detectada

disseram.


Não nos preocupemos com os imprevistos.

Se o impensado se transformar

em som, estaremos todos

para ouvir


As cartas estão todas dadas

O breve tempo de um pôr do sol

é minha única indignação


Mas há sempre

a sua voz

que me pergunta esganiçada

por que eles mentem pra nós?

e a minha única resposta

é também uma pergunta

por que acreditamos

em suas mentiras?


2.


Neste mundo

há quem se encarregue

de observar pedras

que cruzam o nada

por nós. Como os poetas.


Vez ou outra eles podem

gritar os meteoros

a ameaça de sua incandescência

também por nós. Como os profetas.


Apesar dos números

ainda não é possível mensurar

a hora exata da tarde

em que entorna

o medo


Talvez precisemos apenas

da sóbria honestidade

na voz eletrônica dos aviões:

ladies and gentlemen

we’re experiencing turbulence




 

Clara Amorim vive com o corpo e o pensamento na interseção: educação, escrita, arte. É formada em Letras pela UFMG, educadora social e professora de linguagens. Escreveu Cotidiana, caderno poético que integra o livro Desembola na Ideia: arte e psicanálise implicadas na vulnerabilidade juvenil, e é coautora da coletânea de poemas Corpo de Terra, lançado em 2021 pela Editora Quelônio em parceria com o projeto Tomar Corpo.


Ilustração: Fernanda Maia

1 Comment


Antonio Angelo Oliveira
Antonio Angelo Oliveira
Oct 06, 2021

Clara Amorim, boa descoberta de sua poesia!

Como um meteoro cruzando o céu, uma estrela cadente...

Que surpreende em cada verso!

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