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Como rasurar a paisagem

Por Brenda K. Souza Gomes



Esta conversação começa por um desejo: escrever sobre o salto. Começa, também, pela impossibilidade de desviar os olhos da imagem. Decidi organizar este anseio em um ensaio-entrevista que, adianto, forma um corpo polifônico e disforme, composto por dois pares de olhos, pernas que sobrevoam a água e mãos – as minhas. Por ser assim, múltiplo, este corpo é atravessado por ondas, temperaturas: território e êxtase conjugados, a um só tempo, no campo de percepções que a imagem, enquanto acontecimento, inaugura.


Convidei para compor este diálogo comigo o Danilo Nascimento, fotógrafo barranqueiro, nascido em Pirapora (MG). Cumpro, aqui, demarcar o espaço porque pretendo este texto úmido, como as margens de um rio, como as fotografias do meu convidado. Encontrei o Danilo no final de um dia, em março de 2021. Conversamos, sobretudo, sobre para onde se escolhe olhar quando há o desejo do registro.

Danilo apresenta-se como Bicho Carranca. Pergunto primeiro sobre o trânsito do nome que, intuitivamente, me leva a pensar em duas coisas: num deslocamento da forma – o homem que registra, quando o faz, devém outro – e na localização de uma ambiência frequentemente evocada nas imagens do fotógrafo: o rio e as populações ribeirinhas. As carrancas são figuras híbridas (metade homem – metade bicho), talhadas em madeira e colocadas na proa de embarcações. Usadas pelos remeiros para espantar maus espíritos, o objeto é também uma síntese de movimento, já que sua finalidade é ditada conforme segue o fluxo do rio. Ele me responde, timidamente, que o nome escolhido se relaciona à vontade de, talvez, apresentar-se como figura forte, imponente, figura de proa.






A fotografia de Danilo é um desvio da rota que direciona ou costuma direcionar o olhar no cotidiano, é uma rasura na paisagem. Enquanto somos, cada vez mais, inseridos numa lógica sedimentada de encarceramento do corpo que legisla sobre o modo como apreendemos o mundo, a imagem, como nos lembra Octavio Paz, “resulta escandalosa”, pois “aproxima realidades opostas” – arriscaríamos dizer: realidades fundamentadas no campo do puramente visível (o que vejo); ou da ordem do sensível (que percepções o visível é capaz de levantar em mim?). Mas, como desatracar o olho que vê? Como fazer da imagem um acontecimento?


Numa perspectiva de afirmação da vida, seria preciso um encontro fundamental capaz de tirar o pensamento de seu estupor. A partir dessa lógica, selecionaríamos matéria para compor na e com a realidade que nos envolve – seleção que envolve necessariamente um movimento do desejo. Nesse sentido, pergunto ao Bicho Carranca: o que os (seus) olhos selecionam e gostam de ver? O que se traduziria, nos termos que mobilizo aqui, em: de que encontro o fotógrafo parte, afinal? Ao que ele me responde: gosto de ver gente e água misturados. A água tem um poder enorme de atrair as pessoas (...) o fluxo da água nos permite a capacidade de dar vazão a algo.


A paisagem ribeirinha parece ser o grande tema da produção de Danilo. No entanto, sua fotografia não se reduz a uma reprodução de determinado território/ambiência. A seleção de imagens conduzida pelo fotógrafo diz mais sobre como o seu corpo e outros corpos estão ali, naquele lugar (e na água), abertos aos encontros e à composição. E como, nesse espaço, em cenas que, diz ele, não se repetem e não acabam, a vida é um grande banquete, uma ode às paixões alegres, pois reafirmam ao corpo sua potência de existir, no sentido que nos lembra Espinoza. O fotógrafo reitera essa relação quando comenta alguns de seus registros: O salto envolve alegria. Já viu alguém saltar triste?






Ao observar os saltos, capturados pela câmera, percebemos que a água eleva a imagem da realidade sensível, conduzida não por um olho que (apenas) vê, mas que, desatracado da realidade visível/figurativa, é capaz de apreender o movimento puro e sua extensibilidade ao espaço.


Os corpos capturados pelo olhar sensível de Danilo são, justamente, aqueles para os quais as políticas genocidas apontam suas armas. Não por acaso, esses registros são de 2020, ano em que mais uma vez tivemos os nossos engolidos pela necropolítica, que, diga-se, nunca deixou de existir. A imagem do salto não só reifica um estatuto de Alegria, a afirmação das potências de vida de sujeitos de uma cidade majoritariamente negra, mas diz Não aos tiranos, aos homens que, segundo Deleuze, exploram as paixões tristes, que delas necessita para estabelecer seu poder.


Sob o olhar de um homem que registra e nomeia-se bicho, vemos crescer nas frestas das pedras do rio, debaixo de pequenas quedas d´água, um arranjo e outro da realidade. Abre-se a estes que saltam a possibilidade de um devir-peixe e de, assim, rasurarem a paisagem que ocupam junto ao fotógrafo. Talvez o salto por si seja essa rasura, o elemento inesperado, o acontecimento. Que bom que há quem enxergue e apanhe o registro e reafirme, por ele, a sua própria existência no mundo a partir da imagem: quando fotografo, estou o mais presente possível.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DELEUZE, Gilles. Espinoza e os signos. Trad. Abílio Ferreira. Porto/Portugal: Rês-editora, s/a.


DELEUZE, Gilles. GUATTARI, F. O que é a Filosofia? .Tradução: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992.


PAZ, Octávio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. 2ª ed. São Paulo: editora Perspectiva, 1976.

 

Brenda K. Souza Gomes é professora, escritora e pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Filosofia, Ciências Humanas e Outros Sistemas de Pensamento, da Universidade Estadual de Montes Claros. É editora na Revista Cupim e autora do livro de poemas Ebó (2021).


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