Laura Cohen Rabelo
quatro
Quando chegou ao escritório de advocacia para ser atendida eram oito e vinte. Havia combinado com a advogada tão cedo porque precisava chegar ao trabalho às nove, no máximo nove e meia. A secretária, também recém-chegada, pediu que ela esperasse e indicou uma das poltronas duras da recepção. As unhas quebradas já tinham crescido novamente, por baixo das postiças que sua irmã colocou. Ao contrário, a sombra do pânico persistia a cada barulho alto e repentino, a cada sonho que a acordava de noite, não podia baixar a guarda. Fiava-se nos documentos do divórcio, sentia que bastaria assiná-los e ficaria livre. Ficaria? Havia lido tudo no computador da biblioteca e anotou as dúvidas, como a advogada tinha pedido. Parecia que não ia acabar nunca, que ela jamais poderia relaxar de novo, com medo do rosto maníaco do ex-marido reaparecendo nas grades do portão, como um cão a ser sacrificado.
Não pegou uma revista para folhear. Apenas observou enquanto a secretária trabalhava ao computador e virava as páginas de uma agenda encardida – afinal, já era o fim do ano e, a essa altura, as agendas ficavam daquele jeito. Ela também era secretária, só que de uma empresa de contabilidade, e conhecia as agendas no mês dez, a encadernação soltando, o papel volumoso de tantos bilhetes, recibos, tinta de caneta bic, clipes. O escritório, um labirinto de salas e nichos, logo foi tomado por gente chegando ruidosamente, nos ternos, saltos altos e perfume. O ar-condicionado já estava tão forte que ela tinha que se encolher, e a sala de espera tinha um aspecto sóbrio e masculino, todo cinza e azul, estantes de madeira escura e metal. Nenhuma flor. Nenhum espelho.
A advogada apareceu cinco minutos depois, cumprimentou-a, pediu que aguardasse mais um pouquinho e sumiu no corredor. Ela estava morando na casa da irmã e do cunhado há semanas, com o filho. Como era uma casa grande, Priscila e o filho ficaram no quarto do barracão aos fundos. Era confortável, podiam ficar ali para sempre caso se sentissem seguros. O marido bebia. Foi esse o começo do problema, o marido bebendo. Bebia e se tornava o problema, outra pessoa, um violento. O marido tinha ficado preso uns dias, mas soltaram, ela não sabia por que, e aquele juiz, o Dr. Carlos Julião, que era um homem bom, que ouviu seu caso, e instituiu que o marido não podia chegar perto dela ou do filho. Mas nada garantia que ele não chegaria perto dela ou do filho. Agora haviam arrumado aquela advogada tão jovem para atender de graça seu caso, pro bono, era assim que chamava. Eram bons. Não parecia ser só um favor, a advogada estava muito feliz de ajudar, tinha se envolvido de verdade na história dela, como se fosse sua própria história e sentia compaixão. Tantas outras, perto de casa, não tiveram a mesma sorte: mulheres mortas, maridos presos, filhos sendo criados por parentes.
Podiam prender o ex-marido de novo se ele fizesse isso, e o marido fez, o marido ficou batendo na casa da cunhada, gritando na rua que ela era sua mulher, chegou a tentar pular o muro. A polícia chegou depois de uma hora, quando ele já nem estava mais lá. Os policiais foram uns grossos, trataram Priscila como se ela fosse doida, como se o marido não tivesse feito o que ele fez. Priscila até mostrou as ordens do juiz bom para eles, mas foram embora porque não podiam fazer nada. Agora ela não tinha ideia de onde ele estava: ligou na sogra, nada dele, ainda teve que ouvir os impropérios dela, que o marido precisava de cuidado, que alcoolismo é doença, que tipo de esposa era? Uma esposa viva.
Eram oito e meia quando a advogada voltou, com os olhos alvoroçados, e disse que havia um problema antes de sair de novo. O problema só podia ser o marido, ele estava procurando por ela? Ele estava do lado de fora, querendo matá-la? Levantou-se e sentou-se de novo. Quis perguntar a secretária, serena ao seu lado. Então começou o caos, as pessoas andando de um lado para o outro, o telefone tocava, perguntavam se tinham certeza, mais ouvindo do que falando.
Priscila olhou no relógio: oito e quarenta, tinha que sair dali a dez minutos se quisesse chegar no horário para trabalhar, era perto, mas odiava se atrasar e seu chefe andava particularmente intolerante depois daquela história de agressão. Mandou que ela tapasse o olho roxo com uma base, que os clientes não eram obrigados a ver aquilo. Agora a secretária também estava andando de um lado para o outro. Uma emoção sem nome subiu pela sua traqueia. Levantou-se, foi andando pelo corredor acarpetado que fazia afundar os saltos dos sapatos, entrou na sala da advogada, que a recebeu com o rosto assustado. Perguntou sobre o marido, se ele estava causando aquilo. A advogada sorriu e disse que não. É que o Dr. Carlos Julião tinha falecido — era preciso ter força agora, ainda mais força — de forma que era bem provável que elas teriam que fazer todo o processo de novo.
três
Não tinha como colocar tudo em um lugar só, num saco só, levaram da maneira que puderam, juntando pedacinhos, mas Fabiano e o caseiro foram limpar tudo com a mangueira de pressão, água barrosa avermelhada sobre a grama verde. Deram uma máscara para eles. Não estava fedendo, mesmo assim, o cheiro não era bom. E as galochas de açougueiro. Grande sacanagem. Mas ela não ia limpar o que não era dela. Tudo se espalhou, podiam ter posto fogo na casinha, deixado queimar. Acho que era isso que ela queria, deixar queimar. A mulher pensou que um homem lhe bastaria, mas na verdade ele foi insuficiente e a mulher nunca admitiu isso, que ele não bastava, não prestava, deixava-a no vazio, era assim. Controlava os cartões. Quando a esposa gastava demais, ele cancelava, dava uma mesada em dinheiro enquanto as filhas dilapidavam tudo à vontade. Quando queria que ela estivesse bonita em uma festa com os figurões, ele mesmo comprava um vestido. E veja só, um dos figurões se apaixonou por ela e fodeu-a de uma forma que seu marido jamais a tinha fodido. Nem na época das maiores paixões. Não houve época das maiores paixões, é verdade, mas quando um homem poderoso oferece as coisas, você aceita e engole direitinho. Agora mexeu em tudo e só restou essa casa, que não estava mais no seu nome. A fazenda, a desgraça daquela fazenda, ficou com os filhos do primeiro casamento. Diziam que ele era bom, mas era um homem ruim, ruim. Nada no nome dela, nem os sapatos, talvez nem as portas, as louças, a escadaria. Talvez nem mesmo os próprios ovários da mulher ele tenha deixado no nome dela. Declararia também seus ovários no imposto de renda, no inventário de bens, no testamento.
dois
Fabiano ia à fazenda só para cuidar das plantas. A cada dez, quinze dias, dependendo da época do ano, da chuva, do que estava acontecendo no pomar. Cuidava do jardim deles, cuidava do jardim de um monte de gente. Os bacanas, também os mais simples. Às vezes o caseiro pedia ajuda para selar os cavalos, ele ia à contragosto, mas o caseiro era velho e Fabiano tinha pena. Serviço demais. Pobre não se aposenta. Era muito cavalo e isso era bom: muito cavalo, muito estrume. Ganhava o estrume para pôr nas plantas de todos, andava por aí com o saco de estrume nas costas, dava tanta alegria. Fabiano ajudava, todo cuidadoso: tinha medo de levar um coice. Dava-se melhor com as plantas mesmo. Ninguém tinha carteira assinada. Aquela gente só não tinha escravo porque não podia. Havia outros que eram piores. Esses, ao menos, pagavam bem. Mas não gostava de ir quando os patrões estavam. Pessoas estranhas! Deviam ter, ele uns cinquenta e tantos, a mulher uns trinta e poucos. Soube que era juiz, e quando falavam isso, Fabiano achava que era juiz de futebol e ficava tentando reconhecê-lo nos jogos da TV. “Não, seu tonto, é juiz estadual. De tribunal”, a namorada disse, “por isso chamam ele de doutor”. Ele respondeu: “Tostão e Sócrates também eram doutores, um monte de jogador de futebol vira doutor depois. Achei que viravam juízes, é a coisa mais lógica!”.
Fabiano também não gostava de ir quando eles estavam lá porque eles atiravam. Tinham umas armas. Um barulhão, nos alvos, nas garrafas, às vezes alguém jogava alguma coisa para cima e eles atiravam, mas quase ninguém acertava. Ficava um cheiro ruim no ar o dia todo. Fabiano tinha atirado só com arma de chumbinho, mas nunca tinha matado nada, as criaturas de Deus. Tudo bem comer galinha, porco, eram os bichos criados para isso. Achava que aqueles doidos podiam sair atirando nos bichos também, nos tatus, nos gambás. Até nos patos, quando bebiam muito. Eram só homens, as madames ficavam na piscina besuntadas de filtro solar, besuntando crianças bobas com filtro solar, tomando vinho branco, brancas, tudo branco. Às vezes não tinha madame nenhuma, só a esposa do doutor, que ficava na varanda fumando cigarros, o nariz enfiado no vazio, um olhar azul e morto. O gramado ficava imundo dos tiros e era Fabiano quem tinha que limpar: sobravam os cartuchos, ele recolhia tudo, recolhia os pedaços das coisas e não sabia onde jogar fora. Uma vez, colocaram uma foto de um sujeito no alvo e ficaram atirando e rindo. Fabiano não conseguiu reconhecer o homem queimado de balas depois que eles foram embora e deixaram o alvo lá, impresso em papel sulfite. Perguntou para a namorada e ela também não sabia.
O doutor e a mulher ficavam semanas, às vezes mais de um mês sem vir.. Ficavam sem vir, até que, do nada, sem avisar, quando nem era feriado, apareciam. Dessa vez tinham vindo só os amigos do doutor, só a esposa, mais nenhuma madame. Sem crianças. Fim de semana entre amigos, mandaram encher o freezer de cerveja e a Carolina tinha mandado Fabiano trazer umas garrafas de pinga da cidade, a amarelinha do tio de Fabiano, cachaça sem rótulo, perfumosa, que ele adorava. Às vezes ajudava na produção, gostava disso também, e o tio pagava honestamente com dinheiro e cachaça, que ele ia tomando devagarzinho, um pouquinho antes de dormir, para esquentar o peito no frio, a família dele vivia mais de cem anos cada pessoa, diziam que era por causa dessa cachaça.
“Juiz estuda muito, mas tem a vida boa. Eu tô estudando e vou ser juíza”, a namorada dizia. Estava no primeiro período da faculdade de Direito e havia feito Fabiano voltar para a escola. Ele ia à noite, de segunda a sexta, para tirar o diploma de ensino médio. Faltava seis meses para se formar, ele obviamente estava sempre exausto, dizendo a si mesmo: só mais um pouquinho e isso acaba. Gostava mesmo era das plantas. Diziam que as plantas gostavam dele também, como se ele também fosse planta e tivesse os dedos verdes. Só não queria ser atrapalhado enquanto estava podando as árvores, olhando as flores que iam se tornar frutas, adubando o jardim ou aparando o gramado verdinho, que mal havia? Era uma vida muito boa.
A casa da fazenda devia dar umas dez da sua casa. Quartos demais, camas em todos eles. De casal. Duplas de cama de solteiro. Beliches. Ajudou a Carolina a forrar as camas antes das visitas chegarem naquela sexta-feira, e a Carolina pôs o pobre Fabiano para fazer tanta coisa para ela que não deu tempo de arrumar o jardim: estava escurecendo, era preciso correr para a escola. Ele teria que voltar no dia seguinte, infelizmente, quando todos aqueles homens iam chegar sem suas mulheres (só a mulher de Dr. Carlos, que ele levava feito cachorro na coleira) e ele ia achar tudo aquilo muito esquisito, quem viaja assim sem mulher? Iam caçar bichos? Se começassem a caçar os bichos, ele ia chamar a polícia, o sujeito podia ser doutor, mas matar bicho do mato não podia.
Quando estava na aula de matemática, mal conseguiu se concentrar, planejando o dia seguinte: ia acordar às quatro e meia da manhã, tomar um café rápido e ir cuidar do jardim do Dr. Carlos antes de qualquer um acordar. Pronto, era isso. Foi para casa, a namorada fez um chá de cidreira e foram direto para a cama.
Acordou, ferveu água, engoliu rosca molhada no café com leite, pegou a moto e, ainda com o céu fazendo esforço para clarear, foi cuidar das plantas. A Carolina já estava na cozinha quando ele voltou, depois de adubar, podar, limpar o jardim, serviu para ele mais café. Fabiano tomou pouco, o café dela era ruim. Perguntou se eles tinham atirado na noite anterior, quando chegaram, e ela disse que ainda não, mas que iam atirar hoje, Seu Dr. Carlos já tinha ido ao quartinho conferir as armas. Pronto, sete e meia, ele estava suado, voltaria para casa, tomaria um banho e ia entrar de volta na cama com a namorada. Torceu para que ela ainda estivesse lá, quentinha, dormindo.
Quando foi guardar o material da manutenção na dispensa da cozinha, a Carolina ralhou com ele: “Da última vez você deixou suas coisas na dispensa, não pode, ficou tudo fedendo bosta. Deixa no quartinho”, ordenou ela. Fabiano não gostava do quartinho, aquele que ficava afastado, no meio do gramado, perto da represa, onde o Dr. Carlos guardava as coisas dele também. As armas. Longe, longe da casa, até. Parecia não haver espaço para a tesoura de poda, para a pá, para os sacos de estrume, de fertilizante entre a coleção de pistolas e espingardas, a coleção assustadora de Dr. Carlos.
Resmungão, Fabiano pegou as coisas, empilhou no carrinho de mão e foi até o quartinho. Quando colocou a chave na fechadura da porta de madeira, viu que ela estava meio aberta. No chão, viu metade de um homem, encoberto pelo ângulo da porta. De bruços, de sapatos, calça, camisa, sem cabeça; no seu lugar, uma substância sem forma, escura e viscosa na pouca luz da única janela imunda de vermelho e cinza do quartinho, pelas paredes, pelo chão, por todo piso de cimento áspero.
um
É preciso deixar o mínimo. Sem rosto. Arma de bala não, sem fuzil. Sem 38. A espingarda de cartucho. Uma chumbada assim. Calibre 12. Desde a lei do desarmamento, ele não comprou nenhuma. Havia a lazarina de mais de cem anos, herança de outra parte da família. A coleção. Uma garrucha. Começou com armas de chumbinho. Pássaros. Fuzil é bom para assassinato, tiro de precisão. A espingarda leva tudo embora. Não um pedaço, mas tudo-tudo. Quando eles o acharem ali, seria só sangue. Podia ter feito como os casos que aconteciam. Um homem, mesmo com a ordem de restrição, a mulher agredida, os filhos. Encontrá-la na cama com outro. Não tinha armas na cidade. Ele poderia ter era atirado nela, mas e então? Que tipo de vida era aquela em que não se pode mais confiar na própria esposa. Tomando pílula para não engravidar depois de terem concordado que era hora do bebê. Nunca bateu nela, nunca levantou a mão, nunca levantou a voz. Sempre a ela tudo. E ela foi e fez. Isso com ele. O fim de semana para pensar. Ficar com os amigos, conversar com eles (não sobre isso, ninguém haveria de saber). Nem ele mesmo sabia se ia ser capaz de ir até o fim. Só uma ideia: se estivesse se sentindo muito mal era só acabar com tudo mesmo. Ele ia fazer? O último gesto de potência total. Tirar do mundo a única coisa que lhe havia restado. Sem bilhete de despedida. Só o dinheiro, notas de dinheiro. Refez o testamento. Da conta corrente, dia a dia, ia transferindo o máximo que podia para a poupança das filhas. Conta no nome dela, só dela, a esposa não tinha. O nome dela ela não tinha por que ele sabia muito bem tirar as coisas dos outros, era tão fácil. Queria dar a ela uma vida fácil e plena, educá-la financeiramente. Quando se casaram claro que falou em ter filhos! Era o acordo. Suas filhas do primeiro casamento já estavam grandes. Um bebê faria bem, varão do saco roxo. Ele teria como prover melhor agora. A escola. Os estudos. Antes, quando ele era menino, dava para caçar. Hoje não pode mais. Caçaram tatu. Já mataram um veado, uma vez só, depois veado do mato nunca mais apareceu. Uns pássaros. Lobo guará seu pai não deixava matar. Onça não tinha, mas sempre tinha um mais velho dizendo que tinha onça, sim. Que viu pegada. Tinham medo de tudo, do barulho dos tiros. Hoje Dr. Carlos ama o barulho dos tiros. Comidas que crianças odeiam e adultos amam. Selaram os cavalos, saíram mata adentro. Agora, se iam cavalgar, era sem arma. Não podia atirar em nada nem ninguém. Nas coisas, podia. Nos alvos. Nem os peixes da sua parte da represa podia pescar. Mas a parte do rio era dele, ele comprou o terreno. Sem estrutura. Ela tinha vindo sem estrutura. Meio prostituta. Era uma funcionariazinha do fórum. Todas elas eram meio putas: fazem qualquer coisa por dinheiro, qualquer posição por posição. É que quando a puta não tem as coisas que ela pede, não segue as regras. Se ele não cumpre a parte do acordo... Pagou tudo para ela. A faculdade de administração. Dívidas no cartão de crédito. Morando de aluguel. Uma mão na frente outra atrás. Ele ainda era casado e largou as filhas já adolescentes, a decrepitude de uma ex-mulher que queria uma pensão milionária, outra vaca, outra jiboia. Pagou tudo para ela. Fez tudo por ela, para elas, tudo que eu podia dar ele dava, dava porque era um homem bom. Tudo nele é bom e ela faz isso com ele. Espingarda de cartucho. Com o tempo das suas vísceras, seu cérebro que pensa nisso. É assim que ele controla o tempo da vida dos outros.
Laura Cohen Rabelo nasceu e vive em Belo Horizonte. Publicou, entre narrativas longas, contos e poemas, os romances Caruncho (Impressões de Minas, 2022) vencedor do Prêmio Academia Mineira de Letras de 2023 e Duas Línguas (Zain, 2024). É fundadora e professora no projeto Estratégias Narrativas e leciona no curso de pós-graduação em Escrita Criativa da PUC-Minas.
Ilustração: Clara Amorim.
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