Por Douglas Ferreira
Uma das imagens mais reveladoras que me vêm à cabeça quando penso em Renato Negrão, poeta, compositor e artista visual, é a de um painel de grafite pintado num muro da avenida Pedro I, em Belo Horizonte (MG), de autoria de Warley Bombi. Nesse painel, estão representados artistas da cidade, e Renato Negrão está entre eles, em pé, segurando um livro na altura do rosto, provavelmente lendo em voz alta um dos seus poemas, diante da avenida movimentada que liga a região da Pampulha, tradicional ponto turístico de BH, com a região de Venda Nova, localizada na periferia.
A partir dessa imagem, gosto de pensar em Renato Negrão como um poeta consagrado antes pelas ruas da cidade do que pelas instâncias de legitimação tradicionais da literatura, como prêmios, grandes editoras, academias, livrarias etc. Nada me parece ser tão legitimador do envolvimento orgânico de um artista com a vida cultural de sua cidade do que ter sua imagem representada num enorme painel de grafite, diante de uma avenida importante para o fluxo de pessoas, que se deslocam da periferia para o centro e do centro para a periferia, de dentro para fora e de fora para dentro da cidade – já que essa mesma avenida também é parte do trajeto para o aeroporto de Confins.
Além disso, a imagem é reveladora do próprio envolvimento de Negrão com as artes visuais e com a performance, pois ele está ali, numa obra plástica, congelado na posição performática conforme a qual comumente o encontramos em eventos literários, dando corpo ao seu texto. Desde o início, sua obra foi marcada pelo diálogo da literatura com outras artes: em 1996, lança No calo, livro-objeto que reunia 17 poemas dentro de uma caixa plástica, protegidos por tufos de algodão parafusados. Em 2004, lança Os dois primeiros e um vago lote, reunião da sua poesia até ali, acrescida de letras de canção – Negrão tem parcerias musicais com compositores como Juliana Perdigão, Sérgio Pererê, Makely Ka, Estrela Leminski e Kristoff Silva. Ainda assinalando sua forte ligação com a música, em 2012, na obra Vicente viciado, cede espaço no livro a composições de outro autor, o rapper Das Quebradas. Sua última obra, Odisseia vácuo, retoma o primeiro livro na experimentação editorial e plástica: trata-se também de um livro-objeto, sanfonado, que abriga um único poema lacunar, impreciso e irônico. Com esse livro, no mesmo processo, nasceu sua última performance, de mesmo nome.
No calo, Renato Negrão, 1996. Foto: Marcos Gom
Odisseia vácuo, Renato Negrão, 2016. Design: Mateus Dutra. Foto: Marcos Gom
Essas questões, e outras mais, foram desdobradas a seguir numa entrevista-ensaio com Renato Negrão, que foi convidado a exercitar seu pensamento em torno de duas ligações perigosas: Literatura & Mercado Editorial e Poesia & Performance.
Literatura & Mercado Editorial
Eu sempre me senti meio sem lugar, ou entre lugares. Talvez, mais entre lugares do que sem lugar. Essa sensação reflete minha vida de uma maneira geral, desde quando nasci: o bairro, a cidade onde nasci, os lugares onde morei, o fato de ser preto... E a minha relação “independente” – para usar um termo posto no poema Dada – com o mercado também é fruto dessa sensação, e não só da sensação, mas de uma situação concreta de me sentir entre lugares.
Por outro lado, eu cheguei à literatura muito influenciado pela música, mais pela música do que pelos livros. Eu ouvi muita música e li muito encarte de disco antes de ler muitos livros. Então penso que a maneira como me comportei desde quando lancei meu primeiro livro, em relação a um certo tipo de mercado editorial, talvez tenha sido influenciado por um certo tipo de mercado de música. Nesse sentido, a música que eu consumia já tinha um caráter de não pertencer totalmente ao mainstream, já estava conectada ao que se chamava de “marginal”: Mautner, Macalé... – e eu buscava aqueles discos que eram mais difíceis de achar no mercado. Quando lancei meu primeiro livro, acho que a lógica foi mais ou menos parecida: assim como eu busco produtos específicos dentro de um mercado, alguém há de olhar para o meu trabalho como um nicho específico também e vai procurá-lo.
Então sempre tentei produzir meus livros dentro das condições que eu tinha no momento, que me eram dadas, mas isso também me permitia certa liberdade, porque eu não tinha que prestar contas nem satisfações a outras instâncias, gostava de me envolver em todas as etapas do processo. Eu também não conhecia o mercado, o grande mercado não se abriu para mim, assim como não tive tanto interesse em buscá-lo. Por exemplo, lancei um primeiro livro que já era um livro-objeto, e eu o pensei como um produto que pudesse ser vendido tanto em livraria quanto em feira, em loja de presentes, em qualquer lugar.
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O primeiro livro, chamado No calo e lançado em 1996, era um livro-objeto, que convocava as artes visuais. Já em Dragões do paraíso, eu me envolvi num projeto com Marcelo Dolabela chamado Poesia orbital, daí saiu um livro, em parceria com o poeta Daniel Costa. Depois, como livro de autor também, por conta de um edital quase que emergencial, eu acabei fazendo uma reunião dos dois primeiros livros – e fiz uma salada de outros textos que vinha escrevendo, meio musicais, porque já estava envolvido com música, então coloquei as minhas letras de canção dentro desse disco, ou melhor, desse livro, chamado Os dois primeiros e um vago lote. E só depois, anos mais tarde, foi sair o Vicente viciado, por uma editora, Rótula, que criei mais numa tentativa de publicar outras pessoas, o que acabou não se realizando. Esses projetos sempre tiveram um certo tipo de apoio para lançamento, mas não exatamente um contrato com editoras. E, mais recentemente, o Odisseia vácuo saiu pela SQN, que é uma editora pequena, vejo quase como um coletivo.
A partir do Vicente Viciado, passei a receber mais convites para ser publicado por editoras que não eram grandes, mas eram editoras. Porém, por algum motivo, eu não me envolvi muito. Os tempos eram muito diferentes: o tempo da editora não era o tempo da minha produção, o tempo das solicitações, dos pedidos... Então a coisa foi acontecendo um pouco dessa forma. Resumindo, a relação com o mercado editorial, e com as editoras de maneira geral, eu não evito e não procuro, não procuro, mas também não evito. Quando chegar o momento, acho que estou aberto, embora também não saiba se vá aceitar.
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Uma coisa é a literatura, outra é a experiência da literatura, outra é o mercado. Eu faço essa distinção como uma maneira de trazer para mim uma relação mais saudável. A literatura é o que realizo dentro da minha casa, o que escrevo e, no máximo, algumas trocas afetuosas que faço com interlocutores num espaço mais íntimo – o que chamo de experiência da literatura. Quando eu publico e faço diálogos públicos a partir do trabalho que realizei, não acho que isso seja literatura, é um pouco da experiência da literatura, os diálogos… mas já é mediado por um mercado. Então acho perigoso quando não se faz essa diferenciação, porque você pode confundir, por exemplo, tudo quanto é tipo de sordidez, de polêmica, de conversa fiada desse meio com literatura, e acabar trazendo isso para dentro do seu espaço íntimo. A partir desse campo mais garantido e preservado, eu vou entender e me relacionar com o mercado de maneira mais saudável. Produzir dessa maneira é tentar olhar para o que você produziu de modo mais cuidadoso e não se perder por aí, como dizem Os mutantes.
Por outro lado, quando se vai num sarau, num evento público onde se lê poesia, num slam, por exemplo, aquela comunhão em torno da manifestação da poesia, que muitas vezes é bastante prazeroso, acaba sendo uma reverberação, um êxtase do que se produz literariamente, e é muito bom. Então estar dentro desse sistema pode ser prazeroso também. O sistema é para o bem e para o mal.
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Quando leio determinado autor, eu leio por aquilo que tem de poesia, não me importa muito se é um zine, ou de uma grande editora ou de uma editora independente, eu leio para saber se aquilo me toca, se me atravessa ou não.
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Emily Dickinson fez literatura antes de publicar, depois aquilo só se tornou público.
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Nestes tempos de internet e de propagação da informação de maneira muito ágil, você pode escrever dez poemas, publicar um por mês, e no final do ano ficar conhecido no Brasil inteiro. É possível que isso aconteça. Ao passo que, no século passado, se pegarmos um poeta como Pedro Kilkerry, ou os poetas bissextos de maneira geral, eles escreveram muito pouco e não havia essa audiência toda. As performances também são assim. Muitas das performances inscritas na história da arte foram realizadas para um público muito pequeno. A dimensão mítica e a dimensão popular desses trabalhos se deram num tempo mais dilatado. Hoje você escreve qualquer coisa e pode virar um meme, pode ficar muito conhecido. Não sei até que ponto isso é saudável.
Agora, uma dimensão legal disso é você criar o seu próprio ecossistema e fazer bons diálogos com aquilo, formas de se associar, identificações por afetos, por linguagens, por modos de operar, um bioma. As economias criativas podem funcionar de maneira interessante. Algumas vezes eu frequento feiras, e aquilo acaba se tornando um ponto de encontro para conhecer pessoas, linguagens, e me arejar um pouco nesse sistema – às vezes isso acontece, às vezes não. Uma decorrência interessante da literatura são as identificações com as linguagens e os afetos construídos pelo caminho.
Então essas economias criativas, essas tentativas de operar por outras lógicas, constroem políticas interessantes, que podem de alguma maneira conter, atenuar um pouco a voracidade desses mercados, o que eles trazem de ruim, de terrível, de nefasto – era esta a palavra que eu estava querendo achar –, que são as grandes corporações. Entretanto, se essas economias pequenas operam do mesmo modo como operam as grandes, também não adianta muita coisa. Talvez até piore.
Poesia & Performance
Eu penso de uma maneira corporal sempre. O exercício da escrita tem uma forte ativação física em mim. Quando você escreve um poema e tem aquele êxtase da realização de uma criação pela linguagem, você arrepia, fica ofegante, anda pela casa extasiado, é uma dimensão muito física, muito corpórea. Além disso, antes de publicar os livros, eu era vocalista de uma banda na década de 1980, quando vivi minha adolescência. Como a gente convivia com o boom do rock nacional, todo mundo tinha uma banda, e eu não era diferente. Eu já lia, já tinha alguma intimidade com livros, com discos, e fui pro palco. Então essa dimensão da performance veio junto. O Chacal conta que, como para ele era mais complicado montar uma banda, quando falava poemas e saía em excursão ou em uma turnê poética, ele se sentia como um vocalista de banda de rock.
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Quando escrevo, há sempre o impasse entre não perder o ritmo, não perder o pique da próxima frase que preciso criar, e querer ler a frase que acabei de escrever, ler oralmente, para saborear como ela acontece na boca. Então quando eu tento corporificar aquilo que escrevi, posso perder a possibilidade de escrever a próxima frase, o próximo verso. Essa é uma situação um pouco complexa para mim.
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Na PUC-MG, eu fiz filosofia e larguei, mas continuei lendo, continuei gostando, apesar de que hoje tenho certeza de que seria muito infeliz se tivesse a filosofia como trabalho formal. Quando voltei para fazer universidade, foram alguns livros que me deram a guinada da minha vida, eu nem entendia tanto assim de artes plásticas, fui fazendo mais pela intuição. Eu topei com as cartas do Hélio Oiticica com a Lygia Clark, e aquilo deu outra mudada na minha vida. Quis entender como eram esses processos mais plásticos, visuais, e entender como era o comportamento da matéria, o funcionamento dos gestos e dos conceitos. E aí fui fazer Guignard (Escola Guignard – Universidade do Estado de Minas Gerais), mesmo podendo fazer letras. Eu achava que se já estava escrevendo, não precisava ir para um curso formal de letras. Então acabei indo para as artes plásticas, porque eu pensava que dialogaria melhor com minha escrita se a colocasse em contato com outras linguagens.
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Quando você vai compor um livro, existe uma dimensão física muito interessante. Você está ali na frente do computador, no InDesign, projetando, mas quando você imprime um livro e espalha aqueles poemas todos na sala, começa a vê-los numa dimensão, numa escala maior. Faço assim, não sei outros poetas, mas eu imprimo os textos, coloco no chão, vou lendo os poemas e mudando-os de lugar. Existe uma dimensão muito física aí, como se fosse o Pollock pintando.
Aliás, o poeta não é uma pessoa muito ecológica. Se tenho uma impressora em casa e vou escrever um poema, eu posso imprimi-lo vinte vezes, testando cada verso, cada vírgula, para cada palavra que modifico, faço uma impressão para olhar e comparar uma solução com outra, antes de definir. Não consigo fazer isso sem imprimir, eu gasto folha. Sei que o Bruno Brum também faz isso.
Então existe sempre essa dimensão de escala física, de escala cromática. Colocar o texto em diálogo com outros códigos, o espaço, o tempo, a produção de uma imagem no espaço, a dimensão corporal, colocar aquilo que se escreve em relação ao comportamento das outras formas, dos outros símbolos, eu acho que é fundamental.
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É sempre bom lembrar ou é melhor não esquecer que aquilo que a gente está condicionado a pensar de maneira muito segmentada, para a gente que é preto ocorre de maneira mais indistinta. Então valorizar todas as camadas de sentido e de expressão é muito natural, pelo menos para mim.
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Algumas vezes, as performances, as experimentações mais plásticas e visuais me levaram a um texto. Outras vezes, o texto me traz outras camadas de sentido que sinto necessárias, e aí vou experimentar aquilo vocalmente, corporalmente, plasticamente. Então trata-se de um conjunto de experimentações que eu faço no espaço, aqui em casa ou na cidade. Agora, por exemplo, não tenho escrito muita coisa, mas tenho sentido vontade de exercitar outras possibilidades poéticas no espaço em que estou vivendo. Eu coloco alguns materiais disponíveis aqui, preparo a casa para receber esse material e aí a coisa vai acontecendo. Às vezes é uma lâmpada que mudo de lugar, um certo procedimento de luz, outras vezes é o desenho, um parágrafo de um livro, podem ser muitas coisas.
Isso uma hora pode me levar pro texto ou não. Tenho trabalhos de performance que foram motivados por uma só palavra. No Indiferença, por exemplo, que apresentei no Museu de Arte da Pampulha, fiz um trabalho inteiro a partir de uma só palavra. Às vezes, o contrário, eu faço toda uma performance que não será apresentada, mas pode ser realizada num texto que é publicado em livro.
Isso também não quer dizer que um autor que só escreve, e não necessariamente vá para o palco, para a rua ou para a galeria ampliar aquilo de uma maneira tridimensional, não tenha ali uma dimensão performativa, por vezes tem. A Marília Garcia, por exemplo, faz performances, mas no texto já tem um exercício performativo. Outros exemplos são Galáxias, do Haroldo de Campos, ou Catatau, do Leminski.
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A performance é um exercício de autoconhecimento para mim. Na performance o corpo está sempre sendo pensado num certo limite: o corpo em festa, o corpo em risco, o corpo em diálogo.
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A criança fabula, quer ouvir histórias. Mas, na minha infância, eu tive uma ligação, uma percepção e um encantamento com o código, a letra, o corpo físico, a materialidade gráfica das palavras de uma maneira muito intensa. São as memórias que trago mais fortes. Eu não me recordo de muita coisa da minha infância. Me lembro vagamente do meu pai contando histórias antes de eu dormir, mas me lembro muito mais da minha mãe me ensinando a escrever e a ornar a letra “a” num caderno de caligrafia. Me lembro muito mais de eu escrevendo um castigo na escola, num caderno inteiro: “eu prometo não fazer mais bagunça em sala de aula” – e de como a minha letra, a grafia das minhas palavras, ia se transformando na frente do papel.
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A voz, eu entendo a voz de maneira performativa, no sentido de que ela é um diagnóstico daquilo que você é capaz de reproduzir naquele momento. Por exemplo, eu treino pouco a leitura dos poemas hoje em dia, porque me interesso pela singularidade daquele texto lido naquele momento. Já passei mais tempo ensaiando e trabalhando a minha voz para que aquela situação vocálica, acústica, se apresentasse de maneira interessante para o público. Aliás, isso é super importante. Quando estou num sarau, por exemplo, e tem um monte de gente se apresentando e vou falar logo em seguida, percebo que muitas pessoas estão ali preocupadas com uma série de questões, mas não com aquele microfone, com quais são as possibilidades acústicas que aquele espaço e aquela técnica vão lhes oferecer naquele momento. E as pessoas, talvez por falta de traquejo, entram ali um pouco de qualquer jeito. Eu não faço isso. Quando vou me apresentar, penso ao máximo possível na emissão, na acústica, na técnica, em tudo que esteja ali relacionado com o que vou dizer, tentando tirar o máximo proveito dos recursos disponíveis no momento.
Ao mesmo tempo, sei que minha presença e meu registro vocal vão estar extremamente influenciados por aquilo que psiquicamente está incidindo sobre meu momento atual. Assim, tenho pesquisado e gostado de entender a leitura performativa, a leitura em cena. Normalmente, as pessoas escrevem, decoram e depois vão para a cena dizer o texto, fiz muito isso. Hoje em dia, gosto mais da performatividade da leitura, de ler em cena, porque ali eu vou ter uma radiografia mais precisa daquilo que minha presença foi capaz de produzir no momento. A voz está aí neste momento hoje, no aqui e no agora.
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Curiosamente,
aqui na minha sala agora,
eu estou performando o terreno
para me envolver
com experiências
de performance.
Eu preparei a sala
para ela ficar mais organizada
para eu acordar e ir trabalhar
nessa dimensão.
Curiosamente,
tem aqui um pedestal,
um microfone,
uma estante de leitura
e um tripé de câmera.
Uma coisa que neste momento me faz falta,
que eu não tenho no momento,
é um bom amplificador
um bom amplificador
para reproduzir e fazer testes
vocais.
Instagram: @renatonegrao_palavraimagem
Ilustração: Marco Marinho
a partir de "afasia", de Renato Negrão
e fotografia de Marcos Gom
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