Por Paola Resende
Sobre a postura das meninas ao escrever
Não repetirei o que disse nas observações precedentes sobre o porte da pena pelos homens; observarei apenas que ela deve estar colocada entre os dedos de modo que se encontre na mesma linha do braço. Assim, as mães, que para conservar a postura de suas filhas privam-nas de conhecimento útil, não terão acidente algum a temer.
Encyclopédie, Diderot e D’Alembert
Sentada
corpo ereto
ombros alinhados
antebraços equidistantes do corpo
avançando com precisão
não mais que dois terços
sobre a mesa
A cabeça acompanha
a suave inclinação do corpo
à frente
de modo que os olhos
possam fitar
o bico de pena
e controlar
todos os gestos
que farão surgir
a escrita
sobre o papel
O antebraço esquerdo
avança de modo
que somente
os dedos
toquem o papel
fazendo-os subir
e descer
conduzindo-o
à direita e à esquerda
segundo as circunstâncias
As pernas apoiadas no chão; os pés
levemente voltados para fora
Na mão direita, a pena
é sustentada pelo polegar
o indicador e o médio
O anelar e o dedo
mínimo são afastados
com precaução
dos demais
para não incomodá-los
em suas flexões
Aprendem –
para escrever é necessário
mesa sólida
cadeira confortável
fonte de luz à esquerda
Não sei
se algum dia
tiveram
um quarto
só para si
DANZIGER, Leila. "Sobre a postura das meninas ao escrever” in Ano novo
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016
“Sobre a postura das meninas ao escrever”, de Leila Danziger, traz como epígrafe um trecho da enciclopédia de Diderot e D’Alembert, que nos diz sobre a utilização adequada da pena pelos homens, prosseguindo com uma ressalva ao final: “Assim, as mães que para conservar a postura de suas filhas privam-nas de conhecimento útil, não terão acidente algum a temer”. A epígrafe remonta séculos de privação que recaíram sobre as mulheres, subtraídas dos quadros do conhecimento. O título do poema, já trazendo indícios de um manual de boas maneiras, demarca o gênero do sujeito que irá figurar na (controlada) cena de escrita: as meninas, excluídas durantes séculos desse universo. Além do gênero, existe um apontamento para a faixa etária, afinal o termo “menina” costuma designar crianças e/ ou jovens, o que conduziria a uma leitura que colocasse essa cena no início de uma formação intelectual.
Essas marcações são reforçadas pelo primeiro verso, “Sentada” (v.1), que é o único termo em todo o poema que traz a desinência para indicar o gênero do indivíduo que está sendo descrito e, ao mesmo tempo, regulado pelas normas comportamentais que regem o ato da escrita. Esse indivíduo não aparece no poema mediante especificidades e/ou sua subjetividade, ele aparece como uma categoria, representando “as meninas”.
As estrofes são compostas por versos curtos, alguns com pausa ao final, outros constituídos por enjambement (como é o caso dos “As pernas apoiadas no chão; os pés/ levemente voltados para fora”, v. 29-30), que simulam uma catalogação das determinações impostas. O poema descreve a postura necessária e indicada para sentar-se a uma mesa e escrever, seguindo a linha da epígrafe, aludindo a textos que impõem uma disciplina aos corpos, ou à criação de “corpos dóceis”, para lembrar Foucault, que devem seguir rigidamente as instruções decretadas:
No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem-disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica - uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador. (FOUCAULT, 2014, p. 149)
Na construção da cena do “bom emprego do corpo”, há uma gradação nas seis primeiras estrofes que permite abordar esse corpo, que deve escrever, em sua totalidade, já que a descrição inicia-se com um quadro aberto, com a postura na cadeira, até a conduta dos dedos segurando a pena, em um quadro fechado. Nesse movimento, é como se ocorresse um zoom na cena e ela fosse apresentada com diferentes enquadramentos, nos primeiros versos de cada uma das estrofes encontramos: o corpo sentado (v.1), a cabeça (v.8), o antebraço (v.19), as pernas (v. 29), a mão (v. 31) e os dedos (v. 34), todos os membros demonstrando a “ginástica” necessária ao ato da escrita. Essa gradação também aparece nos últimos versos das duas primeiras estrofes: primeiro “sobre a mesa” (v. 7) e depois “sobre o papel” (v. 18).
A dinâmica do corpo é regida com exatidão – “a realização do mínimo gesto” – por meio de ações premeditadas e meticulosas. Essa sutileza das posições aparece nos termos: “precisão” (v.5), “suave” (v. 9), “somente/ os dedos” (21-22), “levemente” (v. 30) e “com precaução” (v. 36), construindo um movimento bem delimitado, restrito e aguçado, regido por um universo de normas comportamentais que não deveriam ser em nenhum instante descartadas.
Os verbos “controlar” (v. 14) e “conduzir” (v. 26) são os termos centrais do poema, pois reforçam a disciplina imposta aos corpos para o exercício de quaisquer atividades. Por meio desse controle, os gestos são contidos e moderados, o que reforça a referência a uma categoria e não a um indivíduo específico, todos devem reproduzir fielmente a norma, conduzir o corpo a simular a regra. E, nesse caso, mesmo que sutilmente, mostram também uma disciplina imposta ao processo mesmo da escrita, atividade que não é isenta de preceitos, “que farão surgir/ a escrita/ sobre o papel” (v. 16-18).
O âmbito privado – a casa, o lar –, historicamente o lugar reservado às mulheres, não lhes concedia um espaço individual, em que fosse possível o desenvolvimento de qualquer atividade, que não no ambiente comum e compartilhado da casa – em oposição, talvez, aos escritórios de portas fechadas dos maridos e dos pais.
Nas duas últimas estrofes, há uma alteração na estrutura do poema, o regime dos corpos é sucedido por uma descrição do espaço e dos objetos necessários à cena da escrita. É como se ocorresse uma suspensão da conduta do corpo, para a consideração do espaço físico em que ele se insere:
Aprendem –
para escrever é necessário
mesa sólida
cadeira confortável
fonte de luz à esquerda
A estrofe é iniciada pelo verbo “Aprendem” (v. 40), elidindo o sujeito, que poderia ser tanto elas quanto eles, e prosseguindo à generalização que ocorre no primeiro verso do poema. É possível, pelas estrofes anteriores e também pela seguinte, que o sujeito seja “elas aprendem”, mantendo a categoria “as meninas” do título. O verbo “aprendem” é isolado no primeiro verso, anteposto a um travessão, que, de certo modo, o segrega do resto da estrofe. O verbo que pode ser tanto intransitivo quanto transitivo direto possibilita uma dupla leitura: a suspensão ao fim do primeiro verso, contendo nele todo o seu significado, e a continuação do sentido nos quatro versos seguintes, que servem de complemento.
No segundo verso da estrofe, o termo “necessário” (v. 41) traz a semântica da essencialidade que é ditada às meninas, isto é, afinal elas “aprendem” o que e como deve ser executado. A enumeração dos objetos necessários ocorre deslocada em relação aos outros dois versos, simulando uma listagem. Entre o terceiro e o quarto verso existe um abalo, provocado pelos termos “sólida” (v. 42) e “confortável” (v. 43), que indicam a rigidez de um dos objetos em contraposição à maciez do outro. No último verso, a disposição da luz “à esquerda” (v. 44) que impede a projeção de sombras sobre a mesa. O primordial para o processo da escrita foi posto: objetos, apenas utensílios, isto é, dispositivos – sem nenhuma condição necessária do espírito. A descrição diz respeito ao plano concreto, mas nada diz sobre as necessidades abstratas e imateriais (e se quisermos, metafísicas) da ação da escrita.
A última estrofe, após todos os preceitos sobre a postura adequada e sobre o espaço da cena de escrita, revela uma condicionante:
Não sei
se algum dia
tiveram
um quarto
só para si
Após a lembrança dessa restrição, por meio de uma dúvida, as estrofes anteriores são perturbadas. O sujeito poético nos lembra que, apesar de todas essas diretrizes específicas ao corpo e ao espaço (que foram concedidas majoritariamente a homens), provavelmente, as mulheres nunca tiveram “A room of One’s Own”, que possibilitasse, minimamente, a dedicação a uma formação intelectual e ao trabalho da escrita. A referência ao ensaio de Virginia Woolf – que se tornou um clássico dos estudos de gênero e analisa os empecilhos que escritoras mulheres encontram em um meio que não é natural ou genuinamente seus – ressignifica as normas anteriores: como pensar a cena da escrita para meninas que nunca tiveram um espaço que lhes pertencesse exclusivamente.
O âmbito privado – a casa, o lar –, historicamente o lugar reservado às mulheres, não lhes concedia um espaço individual, em que fosse possível o desenvolvimento de qualquer atividade, que não no ambiente comum e compartilhado da casa – em oposição, talvez, aos escritórios de portas fechadas dos maridos e dos pais.
Após essas duas últimas estrofes, o poema ganha um tom ainda mais pesaroso, pois não é só pensar em um mundo rigidamente ordenado por códigos sociais de conduta, mas também pensar na recorrente exclusão das mulheres dos espaços propícios a atividades intelectuais e do fracasso dessas normas quando aplicadas a indivíduos que nem sequer podiam ter um teto todo seu.
Para além disso, seria importante ressaltar o caráter metalinguístico, anunciado desde o título com o “ao escrever”: é um poema que nos remete às diversas privações impostas às mulheres no âmbito literário, desde o controle dos corpos até a liberdade material, “a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu se pretende mesmo escrever” (WOOLF, 2019b, p. 9), e a liberdade intelectual, já que “os árbitros das convenções são os homens” (WOOLF, 2019a, p. 15). Como assinala Ana Maria Machado, no prefácio de Um teto todo seu, talvez as meninas precisam trancar-se para serem livres.
Referências:
DANZIGER, Leila. “Sobre a postura das meninas ao escrever” in Ano novo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
WOOLF, Virginia. Mulheres e ficção. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019a.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019b.
Paola Resende é leitora, pesquisadora e mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ilustração: Fernanda Maia
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