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Ossada perpétua (trecho)

Anna Kuzminska




17.06. Fui contar pra Mãezinha sobre a tatuagem que quero fazer na perna. A carta XIII do tarô, A Morte. Fui contar da tatuagem pra Mãezinha: quero tatuar A Morte porque eu tenho um problema sério com a morte, todo mundo tem, mas é que eu penso tanto na morte — na morte dos outros, principalmente — que parece que eu vivo só pra morrer um dia, ou pra esperar que alguém morra. Fui contar da tatuagem pra Mãezinha: tem esse livro do Knausgård em que ele não diz que ele escreve porque ele não quer morrer, mas foi isso que eu li, e entendi muita coisa sobre mim, porque eu escrevo pra viver, de fato, pra ter a sensação de que vivi, pra criar falsas memórias, a pessoa que eu mais invejo no mundo é Elena Ferrante. Fui contar da tatuagem pra Mãezinha: é como se, para cada decisão que eu tomo, precisasse consultar a morte, precisasse me ver diante da morte, precisasse verificar — essa decisão me fará suficientemente feliz à ocasião de uma morte? Fui contar da tatuagem pra Mãezinha: tem este vazio que eu não sei, ainda, se é só medo ou se é um ruído na comunicação com a morte — se, algures, ela só está esperando que eu chegue ao invés de vir atrás de mim — se é vazio porque eu não entendi nada ou porque eu tenho total razão quando eu me rendo, nessa agonia existencialista chatíssima, e quando eu não me rendo, inventando de morar, sei lá, na Alemanha, porque Berlim pareceu legal numa série que fala de morte. Fui contar da tatuagem pra Mãezinha e, eis que, não era mais A Morte, era o Renascimento, era não querer lidar com o que se inicia depois do fim, porque com o fim, enquanto fim, eu faço as pazes, porque eu não sei lidar mesmo é com mudança, nenhuma, e ainda assim tenho esta fantasia de acabar com as coisas só pra vê-las acabar, e eu não sei bem do que eu tava falando, eu não lembro do que eu tava falando, mas A Morte estava ali, mais confusa do que eu, assumindo as culpas improváveis e regando as plantas que, não teve jeito, tive que deixar pra morrer, como se por pura rebeldia. E, na outra perna, eu quero tatuar A Imperatriz.




 

Anna Kuzminska nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis. É fotógrafa, escritora e poeta. Ossada Perpétua (Aboio, 2022) é o seu livro de estreia.


Ilustração: Douglas Ferreira,



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